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Sobre o livro O Cheiro de Coisa Viva, de Dyonélio Machado (Rio, Graphia, 1995. Introdução, seleção e notas de Maria Zenilda Grawunder). In: Zero Hora, Segundo Caderno, 18/07/1995, pp. 8-9.
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OS RATOS POLÍTICOS DE DYONELIO MACHADO
Jerônimo Teixeira
“O Cheiro de Coisa Viva” reúne memórias, artigos dispersos, entrevistas e um romance inédito do escritor gaúcho
Em uma passagem sarcástica do Manifesto Comunista, Marx e Engels acusam os burgueses de, não contentes em possuir as filhas do proletariado, manter o mau costume de trair (conforme a tradução, o termo é mais chulo) uns aos outros. Dyonelio Machado (1895-1985) ainda não era marxista quando escreveu O Estadista, em 1926, mas parece confirmar a observação dos dois pensadores alemães. O primeiro – e até hoje desconhecido – romance do autor de Os Ratos ataca a imoralidade da política republicana no Rio do início do século.
O Estadista é a única peça inédita de O Cheiro de Coisa Viva, reunião de textos dispersos lançada pela editora carioca Graphia. O livro é resultado das pesquisas de Maria Zenilda Grawunder, doutora em literatura pela PUC com tese sobre Dyonelio. Maria Zenilda é a coordenadora do Acervo Literário Dyonelio Machado, vinculado a pós-graduação em Letras da PUC. Pesquisando entre os papéis deixados por Dyonelio, encontrou um livro de memórias incompleto. Publicado em 1990 pelo Instituto Estadual do Livro, Memórias de um Pobre Homem, incluído agora em Cheiro de Coisa Viva, relata principalmente a experiência política de Dyonelio Machado: sua prisão em 1935, pelo envolvimento com a Aliança Nacional Libertadora e depois com o Partido Comunista, e sua breve experiência parlamentar – eleito deputado estadual constituinte pelo PCB em 1947, Dyonelio foi cassado no mesmo ano.
O dogmatismo marxista compromete alguns capítulos das memórias – Dyonelio se refere às “leis que regem o desenvolvimento das sociedades”. Mas o gênio do memorialista alcança momentos de radical originalidade: sua análise do provincianismo gaúcho é aguda e saborosa. O Cheiro de Coisa Viva traz ainda alguns artigos isolados e uma ótima antologia de trechos de entrevistas, compondo uma espécie de painel da marcante personalidade de Dyonelio.
O Estadista deverá ser a peça de maior interesse do volume. É uma obra imatura, em que a dicção de Dyonelio nem sempre é reconhecível. Os personagens – deputados corruptos, arrivistas políticos, militares autoritários, jornalistas vendidos, mulheres ociosas e lascivas – são um tanto esquemáticos, desprovidos da pulsante verossimilhança do Naziazeno de Os Ratos. E, sobretudo, a concisão que faz a contundência do Dyonelio Machado maduro não se percebe neste livro (o narrador anuncia que a história está chegando ao fim quando faltam ainda cerca de 40 páginas). Ainda assim, é uma obra irônica, inteligente, com momentos de grande sensibilidade ficcional – e um sarcasmo na observação do Brasil que ainda não perdeu completamente a atualidade.
= BIBLIOTECA BÁSICA =
O MESTRE ESQUECIDO DA LITERATURA GAÚCHA
Quando o creditavam como inaugurador da ficção urbana no Rio Grande do Sul, Erico Verissimo corrigia: Dyonelio Machado começara antes, com o volume de contos Um Pobre Homem, de 1927. Nascido em 21 de agosto de 1895, em Quaraí, e morto em 19 de junho de 1985, em Porto Alegre, Dyonelio é um dos maiores escritores gaúchos modernos apesar de sua obra ainda permanecer em um certo isolamento.
“Eu sempre procurei o dramático no trivial”, dizia o médico psiquiatra e militante comunista em 1979. A frase vale quase como uma espécie de “poética” do escritor gaúcho cujo centenário do nascimento é comemorado este ano. Seu livro mais famoso, Os Ratos, narra o périplo de um pobre-diAbo subempregado, Naziazeno, pelas ruas de Porto Alegre, em busca de um empréstimo para pagar o leiteiro. À noite, depois dessa jornada cansativa e humilhante, Naziazeno sonha que os ratos estão roendo o dinheiro. Um enredo decididamente trivial, ao qual a prosa seca e precisa de Dyonelio confere dramaticidade.
Dyonelio Machado escreveu Os Ratos – este nouveau roman anterior ao nouveau roman, como define o poeta Décio Pignatari – em apenas 20 noites, em – 1934, para inscrevê-lo em um concurso da Companhia Editora Nacional. Venceu o concurso, o que garantiu a publicação do romance no ano seguinte, quando Dyonelio estava na prisão por sua atividade política. O livro seguinte, O Louco do Cati – considerado por Guimarães Rosa um dos 10 melhores romances brasileiros -, foi ditado da cama, na qual Dyonelio se recuperava de uma crise cardíaca, para a mulher e a filha.
As desventuras dos personagens de O Louco do Cati seguiriam em Desolação, Passos Perdidos e Nuanças. Depois, Dyonelio investiria na ficção histórica – estudou obras em grego e latim para escrever Deuses Econômicos, Sol Subterrâneo e Prodígios, ambientados nos primeiros séculos da era cristã.
“Nenhum editor jamais se interessou por outros livros meus senão Os Ratos, Um Pobre Homem, O Louco do Cati”, reclamaria Dyonelio em 1982, quando estava voltando a editar depois de praticamente três décadas de ostracismo. Suas obras continuam raras nas prateleiras das livrarias. A Ática tem em catálogo os romances Os Ratos, O Louco do Cati, Endiabrados e Ele Vem do Fundão.