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Poeta e ensaísta mineiro, começou profissionalmente no jornalismo e na crítica literária, tornando-se mais tarde um dos mais importantes pesquisadores e divulgadores do barroco no Brasil. Estreou na poesia em 1953, com O Açude e Sonetos da Descoberta, a que se seguiram Carta do Solo (1961) e Frases-Feitas (1963), livros de iniciação reunidos, em 1969 , em Código de Minas & Poesia Anterior. Publicou depois: Código Nacional de Trânsito (1972), Discurso da Difamação do Poeta (1976), Masturbações (1980), Barrrocolagens (1981), Delírio dos Cinquent’anos (1984) e O Visto e o Imaginado (1990). No ensaísmo, é autor, entre outras obras, de O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco, de 1971.
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Do livro Catas de Aluvião – Do Pensar e do Ser em Minas (Rio, Graphia, 2000)
SOBRE DRUMMOND EM 64: A VOZ SÁBIA DO POETA
Falar sobre Carlos Drummond de Andrade – o homem, o poeta, essa grande figura da inteligência brasileira de nosso tempo -, falar sobre a sua personalidade e a sua obra não é tarefa que se improvise. Daí ter eu, ao ser procurado pelo amigo Elmo Abreu Rosa, sugerido o nome de Emílio Moura, velho companheiro, amigo dileto de Drummond e conhecedor apaixonado de sua poesia, para trazer até vocês um depoimento mais rico de interesse crítico e certamente menos formal nas referências biográficas. Entretanto, as circunstâncias se conjuraram e acabei vendo recair sobre mim o encargo, do qual procurarei dar conta dentro das minhas naturais limitações de homem afeito à palavra escrita e que raramente se atreve a falar outra linguagem que a coloquial. Quanto às credenciais para a incumbência, elas também são limitadas, pois, apesar de ter lido quase uma dezena de vezes a sua obra poética mais antiga, apesar de estar atento à publicação de cada novo poema seu, ainda não consegui esgotar a poesia de Drummond em todo o seu conteúdo humano, em toda a sua força renovadora como linguagem e em todas as suas múltiplas vertentes formais. A cada leitura surgem sempre novas instigações, novas sugestões, novos apelos à sensibilidade, que se vê assim empolgada por uma beleza que, ciosamente, só aos poucos se vai revelando, como para prender-nos mais e mais.
A propósito, lembro aqui a experiência singular de certa moça minha conhecida que nunca havia lido Drummond. Ganhara ela de presente de aniversário um volume de seus poemas completos – Poesia até agora -, displicentemente lançado sobre a cama em meio a embrulhinhos coloridos, vidros de perfume e outras lembranças gratas à vaidade feminina. Por falta de uma estante, o livro acabou indo parar no guarda-roupa, ficando ali desajeitado e incômodo entre vestidos, sapatos e outros objetos de uso pessoal. Todos os dias, na hora de trocar de roupas, a moça deparava com o volume, inerte mas agressivo na sua capa vermelha. Um dia, por desfastio, ela resolveu abri-lo. Deu de cara com as palavras ásperas, duras do poeta e não escondeu a reação: “isso não é poesia, é um tijolo!” Mas a moça começou a gostar do “tijolo”, um gosto assim meio esquisito que ia se tornando mais forte e atraente a cada novo contacto. Terminou por ler o livro todo, não mais um “tijolo”, mas um edifício de linhas arrojadas e modernas, com amplas janelas abertas para o mundo e para a vida. (1)
E eu lembro a experiência da moça porque ela nos dá uma medida exata de como costumamos reagir diante da autêntica poesia, da autêntica obra de arte. Vocês sabem que tudo que é fácil a gente gosta mais, porém gosta uma vez só, não tem mistério na segunda vez, na terceira, e por fim cai na rotina ou no esquecimento. A poesia de Drummond é difícil mesmo, eu também achei assim quando da primeira leitura, embora deva confessar que não me pareceu nenhum “tijolo”. Eu fui mais feliz que a moça: comecei logo a divisar em cada poema um edifício, deslumbrante para a minha juventude, ao qual iam se somando outros e outros, numa visão monumental que ainda cresce para mim a cada releitura e que hoje posso comparar à impressão que me causou em Brasília a descoberta épica dos blocos arquitetônicos de Niemeyer. Aliás, eu estou quase a dar razão a um amigo meu, pintor talentoso e leitor inteligente, para quem, se há três gênios no Brasil, eles se chamam Aleijadinho, Niemeyer e Drummond.
“Mas esse homem nasceu ‘cobrão’ desse jeito?” – perguntarão vocês. “Não teve ele que estudar e trabalhar arduamente como qualquer pessoa que deseje construir alguma coisa?” As perguntas são procedentes e eu vou respondê-las daqui a pouco. Antes, quero que ouçam este poema:
“Saber que tu não virás nunca encher de rosas o meu quarto,
encher de beleza a minha vida.
E continuar à espera de tua graça dolente, sobrenatural,
continuar à espera, de mãos vazias.
Saber que não partirás o meu pão, que não beberemos juntos,
ao jantar, um pouco daquele amável e grato vinho velho,
que não acenderás a minha lâmpada,
que o piano não possuirá os teus dedos.
Saber tudo isso, o impossível e o irremediável
de tudo isso … e continuar sonhando inutilmente.
Por que não vens encher de rosas o meu quarto?
Ao menos,
vem encher-me de lágrimas os olhos”.
“Ora, esse é um poema romântico”, observarão vocês, “e estamos aqui falando de Drummond, poeta objetivo, plantado no centro da realidade”. Sim, eu concordo, é um poema romântico, não resta dúvida. E digo mais: não é um grande poema. É um poema comum, que qualquer moço de vinte anos seria capaz de escrever num instante de paixão amorosa. Pois esse poema, meus amigos, é de Drummond. Não do poeta irônico que depois dos trinta anos publicaria Alguma Poesia e Brejo das Almas. Não do poeta social e humaníssimo de Sentimento do Mundo e A Rosa do Povo. Não ainda do poeta metafísico de Claro Enigma. Não, esse poema não se encontra em nenhum livro de Drummond. Fomos descobri-lo numa velha revista. (2) E ele trazia uma data: 1924. Sim, meus amigos, Drummond não foi diferente de qualquer um de nós. Ele foi moço também, viveu a sua “ilusão literária”, alimentou os seus sonhos e sofreu quem sabe mais de uma decepção sentimental. Ele começou como todo escritor jovem, inseguro nas suas experiências, ambicioso nos seus projetos. A importância singular que ele tem hoje na poesia brasileira, isto sim, é diferente da de outros poetas, é pessoal e intransferível. “Drummond é o maior poeta que o Brasil já deu e reconheço sua superioridade sobre mim”, confessa Manuel Bandeira(3), poeta que para muita gente passa por ser o principal do modernismo brasileiro. Pois bem, essa posição o moço Drummond não a conquistou por um golpe de sorte. Conquistou-a, sim, o homem Drummond, palmo a palmo, conscientemente, à medida em que ia amadurecendo o seu poder criador e a sua visão lúcida e profunda do drama existencial.
Conversando sobre temas gerais da poesia, como é hábito em nossa rodinha da rua da Bahia, um jovem poeta de vanguarda me saiu com uma observação surpreendente: “Drummond não teve participação ativa na implantação do modernismo”. A afirmação do moço tinha a sua razão de ser, porquanto ele estava lendo os Antecedentes da Semana de Arte Moderna, de Mário da Silva Brito, e ali não encontrara maiores referências ao movimento renovador em Minas. “Ora”, ponderei a ele, “o autor do livro trata apenas dos acontecimentos de São Paulo. A história do modernismo em Minas está por ser escrita”. Despertado, assim, para a questão, eu aproveito o ensejo para acrescentar mais alguma coisa a respeito. Em primeiro lugar, devo chamar a atenção para o fato de que os homens que fizeram a Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo eram, em sua maioria, pertencentes a uma geração anterior à de Drummond. O trabalho dos paulistas, portanto, foi precursor em seu teor de luta e divulgação, alastrando-se depois ao Rio e aos outros estados. Em Minas, o grupo que então se formou era extremamente jovem nas alturas de 1922, mas isso não impediu que, nos anos imediatos, se consolidasse a sua posição revolucionária e passassem os jovens mineiros a exercer função preponderante no movimento modernista. E imaginem vocês as barreiras de incompreensão que eles tiveram que vencer com as suas ideias novas numa cidadezinha provinciana como era a bucólica Belo Horizonte dos anos 20! Foi aí que surgiu e se impôs a figura de Drummond.
Para dar uma ideia correta das atividades modernistas em Minas e do papel desempenhado pelo autor de Lição de Coisas, eu invoco o testemunho de Emílio Moura, um dos principais integrantes do grupo: “O que é necessário acrescentar”, diz ele, “é que houve um líder do movimento modernista em Minas Gerais e que esse líder foi Drummond.- Todos nós o reconhecíamos. Não quero dizer com isso que procurasse ajustar o espírito de cada um de nós às linhas essenciais de sua estética ou nos impusesse de algum modo as suas diretrizes espirituais. Nada disso. A verdade é que era o espírito criador mais ágil e o mais bem informado de todo o grupo”. “E como nos obrigava a pensar e a desconfiar de nossa própria suficiência com a mais viva das sinceridades! Drummond sempre foi desconcertante. Conversar com ele já era, naquele tempo, uma experiência sempre nova. Nunca encontrávamos nele a reação esperada, ou o homem da véspera. Dir-se-ia que cada noite o enriquecia, apurava-lhe em alguns graus a mais a agilidade da inteligência, aumentava-lhe o poder receptivo e transfigurador da sensibilidade. Acrescente a isso o seu conhecido espírito de humor, a coragem intelectual e a mais irredutível fidelidade a si mesmo. Terá então a ‘bomba’ que devia ser uma personalidade literária dessa categoria em um meio mornamente pacato e reacionário como era o de Belo Horizonte daqueles dias”.(4)
Outro aspecto a salientar, e que Emílio Moura não aborda nesse seu depoimento, é o respeito que os moços de Minas Gerais mereciam dos “papas” modernistas de São Paulo. Conta João Dornas Filho, também participante do movimento mineiro e fundador do jornal Leite Crioulo, um episódio ocorrido em 1929 e que põe em evidência a importância atribuída aos escritores novos de Belo Horizonte. Oswald de Andrade fundara no ano anterior a Revista de Antropofagia, abrindo-a com um manifesto radical, em que propugnava não só uma estética nova, mas toda uma filosofia para a nascente civilização brasileira. Trazia frases que hoje chamaríamos “altamente subversivas”, ou frases provocativas pelo seu teor insólito como “Só a antropofagia nos une” ou “Tupy, or not tupy that is the question” (5), frases, porém, que não encontrariam o eco esperado em meio ao tumulto das correntes em choque naquela altura do modernismo. Oswald achou, todavia, que contaria com a adesão imediata de Drummond e seus companheiros, os “meninos de Minas”, como paternalmente dizia. Grande, porém, foi a sua surpresa ao receber esta carta de Drummond, que, no seu humor, não escondia a velha prudência mineira, a proverbial rebeldia de não aceitar quaisquer formas de imposição ou arrogância: “Estou ciente do que v. me conta na sua carta sobre a Revista de Antropofagia. Também estou ciente da revista, que leio sempre no Diário de São Paulo. Agora o que me recuso a tomar conhecimento é da antropofagia em si. Não posso acreditar num movimento que conta com a adesão do Álvaro Moreyra e que não jantou ainda o Benjamin Péret. O primeiro por ser o mimoso escritor do Para Todos, que nós bem conhecemos. E o segundo por ser suprarrealista francês. Ora, por muito menos um índio jantava um portuga”.(6)
A carta a Oswald mostra quanto prezava Drummond a posição de autonomia e a direção própria do grupo mineiro, cujos poetas iriam levar à poesia nova, no dizer do ensaísta pernambucano Luiz Costa Lima, “o que faltava de substância ao ímpeto” dos primeiros autores modernistas.(7)
Não foi, todavia, por sua liderança regional que Drummond se impôs assim como presença decisiva para os rumos da poesia brasileira. O motivo de sua projeção na literatura nacional, como um de seus valores exponenciais, reside na plena consciência da missão do poeta, na atitude crítica que sempre assumiu diante do fenômeno estético. Para ele, poesia não é feita somente de sentimentos, de emoções mais ou menos bem captadas. A poesia é também – e primacialmente – uma construção fundada na linguagem e o poeta deverá saber para tanto utilizar adequadamente o seu instrumento, o seu material de trabalho. Daí ter ele resumido a sua “arte poética” nestes versos: “Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que esperam ser escritos”(8). E a grandeza de sua linguagem consiste na sincera, na honesta objetividade. Drummond não esconde o que tem a dizer, nem o diz em palavras gastas, empoladas ou cheias de suntuosidade sonora mas sem nenhuma autenticidade comunicativa. Ele não lança mão de metáforas evasivas para encobrir, por exemplo, a verdade da palavra “fome”, nem chama de “pálidas donzelas” as moças saudáveis de nosso tempo, que estudam em universidades ou simplesmente trabalham, mas que igualmente se queimam ao sol das praias ou dançam o twist e a bossa nova. Drummond é um poeta que a gente pode olhar de frente, que a gente pode conversar com ele de-homem-prá-homem. Foi por isso que o velho cacique Oswald de Andrade, o demolidor de ídolos e grande espírito crítico do modernismo, esquecendo-se do incidente duro para a sua vaidade que foi a mencionada carta de 1929, veio a afirmar, vinte anos depois, que Drummond “consolidou com a sua obra a moderna poesia do Brasil”.(9)
A poesia de Drummond atingiu, sem dúvida, a sua plenitude com a publicação de Sentimento do Mundo, em 1940, e A Rosa do Povo, em 1945. Nesses livros, o humor e a irreverência diante dos tabus temáticos e formais, que escandalizavam os assustados bonzos acadêmicos em poemas como aquele da “pedra no meio do caminho,”(10) cedem lugar a um compromisso novo do poeta: a sua responsabilidade como testemunha da enorme tragédia da Segunda Grande Guerra. É a hora construtiva que soa, não só para a sua obra, como para toda a poesia modernista. Passara a fase das escaramuças antiparnasianas, o período das experimentações formais. Aparece então “o primeiro grande poeta público do Brasil”, na expressão de Otto Maria Carpeaux(11), e ele se chama Carlos Drummond de Andrade. Em “Sentimento do Mundo”, “José” e “A Rosa do Povo”, acham-se os seus poemas participantes, que marcaram um dos momentos mais altos de toda a história da poesia da espécie nas Américas, só comparáveis na grandiosidade humana de sua mensagem aos poemas sociais de Walt Whitman ou Pablo Neruda. O poeta faz a sua opção corajosa na luta contra o fascismo e se define solidariamente no poema “Mãos dadas”:
“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”.(12)
Numa apreciação, ainda que superficial, da obra de Drummond, não poderia faltar uma referência à presença de Minas em sua poesia. “Uma rua começa em Itabira,/ que vai dar no meu coração”, escreve o poeta, após se explicar com humildade: “verdadeiramente só conheço minha terra natal”(13). Essa marca telúrica, esse “Selo de Minas” como chamará num de seus livros, acompanha-o em toda a sua trajetória poética. Eu já tive mesmo oportunidade de proceder ao levantamento de seu “itinerário mineiro”, em artigo publicado há alguns anos. (14) A incidência sugestiva e motivadora de Minas na poesia de Drummond é por demais longa e intensa. Uma análise dessa ordem demandaria várias laudas de papel e uma atenção que acabaria cansando vocês. Assim, prefiro anotar de passagem esta peculiaridade da poesia drummondiana, sugerindo que procurem vocês mesmos assinalar o fato quando da próxima leitura que certamente farão do grande poeta e patrono deste centro de estudos. Há toda uma geografia sentimental, lírica ou dramática de Minas a ser percorrida, palmilhada, vivida na poesia do mineiro Carlos Drummond de Andrade.
E a poesia de vanguarda? Que tem a ver Drummond com essa modalidade de poesia tão discutida hoje no Brasil, particularmente aqui em Belo Horizonte, nos jornais, nas escolas e até mesmo nas ruas? Vanguarda, como vocês sabem, é a linha avançada, é o que vai na frente, tanto na arte, quanto num time de futebol. Vanguarda é o pintor Volpi e é também o fabuloso Pelé. Vanguarda representa, por outro lado, um estado de espírito, crítico, aberto, sintonizado permanentemente com o progresso do mundo. Vanguarda quer dizer não se acomodar, não se academizar, não dormir sobre os “louros conquistados”, não se tornar gagá, coroa, medalhão. Vanguarda é pesquisa e é criação. Assim, ninguém merece melhor a conceituação de vanguardista na poesia moderna do Brasil que o nosso Drummond. Ele partiu na frente de seus companheiros e não cedeu jamais a tocha acesa pelo moço inconformado das primeiras escaramuças modernistas. Seu livro mais recente, Lição de Coisas, nos mostra um poeta atento à evolução das formas e capaz de renovar-se criativamente. Mas para nós, críticos e poetas de hoje, vanguarda tem também outro sentido. É um movimento estético que adquire estrutura e quer afirmar-se dentro da sequência histórica de nossa poesia, que parte do arcadismo, passa pelo romantismo, pelo parnasianismo e pelo simbolismo, para alcançar o modernismo em 1922. O vanguardismo, ou vanguarda participante, tem seus próprios fundamentos estéticos e se bate por uma poesia nova, cuja linguagem seja concisa, clara, eficiente e verdadeira, como exige a sensibilidade de nosso tempo. Ela procura construir as suas formas, vivas, nacionais, concretas, visuais até. O poema de vanguarda não quer apenas ser lido, mas visto, apreendido e sentido em sua verdade humana e brasileira. Como linguagem objetiva, sintética, sem subterfúgios, a poesia de vanguarda é bem uma vertente da poesia de Drummond, como é também uma consequência formal da poesia de João Cabral de Melo Neto, outro grande poeta brasileiro que eu gostaria imenso que vocês conhecessem, poeta hoje admirado em várias partes do mundo e traduzido até para o alemão! Drummond e João Cabral são, pois, os alicerces da nova poesia, poesia de vanguarda porque está na frente e reflete como realização estética a verdadeira consciência crítica nacional.
Eu disse que falar de Drummond não é tarefa que se improvise e acabei improvisando! Quanta coisa, talvez essencial, fica a considerar de sua poesia, que não tem etapas e nem idade porque se realiza e se explica como um todo, uma totalização da própria sensibilidade do homem moderno brasileiro. O poema do poeta Drummond de trinta anos se completa e conclui no poema do velho poeta de Claro Enigma e Lição de Coisas. E a grande coerência que devemos levar em conta em Drummond é a coerência do artista, do homem que optou pela sua arte, abdicando do sucesso fácil, das honrarias e da fortuna material que nada significam como expressão autêntica da aventura humana. Enquanto muitos de seus companheiros preferiram a glória vã da política e chegaram a governadores e ministros de estado, Drummond recusou mesmo uma simples candidatura a deputado. Preferiu ser poeta, uma forma bem mais elevada de realizar-se como homem público, como homem que interpreta as tendências, os sentimentos, a alma do povo. Esta é, antes que uma lição de humildade, uma lição de grandeza. Pois é nos poetas, nos artistas que o povo vai buscar a sua verdade nos momentos de angústia e de provação. E em meio aos sofrimentos e às decepções é a voz sábia do poeta que, consciente ou inconscientemente, o homem prefere ouvir. Drummond é um dos maiores poetas de nosso século, no Brasil e no mundo, e na sua poesia eu também concito vocês a recolherem a palavra universal de otimismo, de confiança, de fé que deve animar os moços contra os demônios da descrença e do medo:
“O essencial é viver!”(15)
(1964)
(1) O caso é referido também por Laís Corrêa de Araújo, em sua crônica “As descobertas do tempo”, Diário de Minas, Belo Horizonte, 19 de outubro de 1952.
(2) O poema aparece sob o título “Gravado numa parede” na revista Surto, ano I, nº 2, Belo Horizonte, novembro de 1933.
(3) Citado por Pedro Bloch, Manchete, Rio de Janeiro, 15 de junho de 1963.
(4) Emílio Moura, entrevista ao Diário de Minas, Belo Horizonte, 19 de outubro de 1952.
(5) Oswald de Andrade, “Manifesto antropófago”, reproduzido na Revista do Livro, nº 16, Rio, dezembro de 1959.
(6) João Dornas Filho, “Achegas para a história do modernismo brasileiro”, Diário de Minas, Belo Horizonte, 19 de outubro de 1952.
(7) Luiz Costa Lima Filho, Dinâmica da literatura brasileira: situação do seu escritor, Recife, 1961, pág. 70.
(8) “Procura da poesia”, “A Rosa do Povo”, em Poesia até agora, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1948, pág. 123.
(9) Oswald de Andrade, “O encontro”, “Letras e Artes”, Suplemento de A Manhã, Rio de Janeiro, 15 de fevereiro de 1948.
(10) “No meio do caminho”, “Alguma poesia”, em Poesias, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1942, pág. 34.
(11) Otto Maria Carpeaux, Origens e fins, Editora da Casa do Estudante do Brasil, Rio de Janeiro, 1943, pág. 328.
(12) Poesias, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1942, pág. 164.
(13) “América”, “A Rosa do Povo”, em Poesia até agora, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1948, pág. 204.
(14) Affonso Ávila, “Itinerário mineiro”, Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 de abril de 1958.
(15) “Passagem da noite”, “A Rosa do Povo”, em Poesia até agora, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1948, pág. 139.