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André Bueno – paulista radicado no Rio de Janeiro, onde leciona na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – recorre à linhagem teórica que vem de Karl Marx, Sigmund Freud, Antonio Gramsi e Georg Lukács, passa por Walter Benjamin e Theodor Adorno e chega, mais recentemente, a Fredric Jameson e Guy Debord, além de, entre os ensaístas brasileiros, Antonio Candido, Alfredo Bosi, Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda e Roberto Schwarz. São seus interlocutores para o estudo de uma fase histórica em que as ilusões de progresso e felicidade prometidas pelo consumismo se acentuam tanto quanto são aperfeiçoados os mecanismos de exclusão social – que limitam, inclusive, o acesso à leitura.
A partir do diálogo com esta tradição de pensamento crítico se descortinam as análises das estratégias de resistência à naturalização da violência cotidiana e as denúncias de um persistente mal-estar diante da civilização de nossos dias elaboradas pelas narrativas de José Saramago, Italo Calvino, Julio Cortázar, Franz Kafka e Paul Auster.
É assim, também, quando o autor faz um inventário das revoltas românticas contra a ordem burguesa, na Europa e no Brasil, lendo os casos exemplares de, entre outros, Arthur Rimbaud, Lima Barreto, Oswald de Andrade e Torquato Neto.
Ou, ainda, nos textos que redimensionam o rótulo “realismo” – mágico, fantástico, maravilhoso – com que se tem designado a produção literária na América Latina.
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Do livro Formas da Crise – Estudos de literatura, cultura e sociedade (Rio, Graphia, 2002)
PREFÁCIO
Os textos que compõem este livro foram escritos ao longo da década de 1990. Alguns já foram publicados, outros são inéditos, todos foram revistos e, espero, melhorados. Resultam, quase todos, de pesquisa apoiada pelo CNPq. Fica aqui o meu agradecimento. A primeira parte é composta por um ensaio que analisa os mitos e miragens associados à sociedade do espetáculo, composta de mercadorias e simulacros de massa, parte inevitável da época em que vivemos.
A segunda parte trata da condição humana no capitalismo avançado, tendo como referência a literatura de José Saramago e de Julio Cortázar, ambos dando forma e criando variações em torno da estranheza e da cegueira que nos é contemporânea. Essa parte fecha com um texto sobre Vincent van Gogh e Andy Warhol, escrito a partir de uma análise muito conhecida da pós-modernidade, feita por Fredric Jameson.
A terceira parte apresenta um ensaio sobre paixões inúteis, isto é, uma análise das revoltas românticas contra o capitalismo, que começam no século XIX e atravessam quase que todo o século XX, com ênfases variadas e variadas formas de recusa ao desconforto que vai se apresentando à medida que o capitalismo avança.
A quarta parte traz estudos sobre Mário de Andrade e Oswald de Andrade, partes do já clássico modernismo paulista, cuja herança não me canso de admirar. Inclui um texto sobre a posição social dos leitores e das leituras, fazendo um jogo entre Macunaíma, Jeca Tatu e Godot, e fecha com um ensaio sobre a América Latina, pensando a crise do continente a partir do presente, como variações desencantadas, que deslocam as figuras do passado, até o mais recente.
A quinta parte diz respeito às relações entre forma literária e a vida cotidiana nas cidades e traz de volta José Saramago e Julio Cortázar, agora na companhia de Walt Whitman, Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud, Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa, James Joyce, Franz Kafka, Italo Calvino, Ricardo Piglia, Haroldo de Campos, Paul Auster. Além disso, apresenta um comentário sobre as vanguardas históricas do começo do século XX e sua relação com a vida nas cidades.
A sexta parte é composta por quatro estudos, um sobre as imagens da mercadoria, pensada a partir da tradição crítica marxista, outro sobre a relação entre modernidade e barbárie, e dois sobre temas e problemas ligados à Teoria Literária e à Literatura Comparada, analisando certas cotas de ilusão e de idealismo bastante em voga.
A sétima e última parte do livro traz dois pequenos ensaios sobre leitores e leituras, imaginando a liberdade dos leitores e das leituras, em constante contraste com a dura resistência do real e os imperativos categóricos postos pela necessidade. O último deles é composto por algumas cenas de leitura, contrapondo sempre a civilização e a barbárie, a memória e o esquecimento, a vida dos livros e a cegueira que acompanha a história dos homens vivendo em sociedade. É, a seu modo, uma homenagem a Scherazade, que continua narrando, para sempre e mais um dia, para não morrer; à mãe lendo para seu filho; a Jean-Jacques Rousseau, lendo suas Confissões num salão; a Antonio Gramsci, escrevendo no cárcere suas cartas para as gerações futuras; a Eric Auerbach, exilado na Turquia, escrevendo quase que de memória sua Mimesis; aos sonhos noturnos dos operários, depois das fatigantes jornadas de trabalho; às mulheres lendo em voz alta enquanto trabalham; aos filhos dos trabalhadores brasileiros sem-terra, sendo educados em tendas à beira das estradas; aos exilados Bertold Brecht e Walter Benjamin; a Karl Marx em Londres, lendo e estudando, pensando a pré-história e uma possível história da humanidade emancipada; a Italo Calvino; a Carlos Drummond de Andrade, o fazendeiro do ar passeando como o mais comum dos cidadãos pelas ruas do Rio de Janeiro; a Carlos Lamarca, isolado no sertão da Bahia, com fome, escrevendo cartas líricas para sua amada Iara Iavelbergh; a Torquato Neto, desafinando de vez o coro dos contentes e morrendo a morte errada, suicidado pela sociedade; a Mikhail Bahktin, na falta de papel, fumando seus manuscritos no exílio siberiano. O poema dizia, e dizia muito bem: vocês, que vierem depois, não se esqueçam, nós vivemos em tempos difíceis.
Também não passam despercebidas as referências que orientam os textos reunidos neste livro. Para ficar nas mais constantes, uma tradição crítica brasileira – daí Antonio Candido e Roberto Schwarz como pontos de apoio para várias análises – e uma tradição crítica europeia, forte e ainda influente, que tem me interessado e motivado ao longo de muitos anos – Karl Marx, Sigmund Freud, Antonio Gramsci, Georgy Lukács, Walter Benjamin, Theodor Adorno, com suas convergências e divergências, alimentando um debate dos mais ricos e interessantes. Além deles, cabe lembrar de Perry Anderson, ‘Ierry Eagleton, Guy Debord, Michael Lowy e Fredric Jameson.
Assim sendo, o conjunto monta sua figura juntando afinidades eletivas com uma certa intenção crítica, com muito prazer situada na contracorrente dos que se dedicam, hoje em dia, a fazer o elogio do existente. Uma rápida olhada para o caminho percorrido permite perceber várias ilusões, postas de lado pela velocidade e violência da História de nosso tempo. Que seja. Mas, seja como for, plantaremos a sementte da nossa esperança à margem da margem, na terceira margem do rio, entre o continente e a ilha, solitários e ainda solidários. Para que haja porto. Para que o mar não termine jamais. É essa a esperança do navegante. É esse o roteiro de leitura.