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Filho do renomado historiador Ernesto Cruz, Cauby Cruz (Belém, 1926 – Belém, 1966), formado pela Faculdade de Direito do Pará, dedicou-se ao jornalismo e à literatura.
Foi notável cronista, mas a poesia é que lhe deu muitas alegrias. Por exemplo: em 1950, integrou a lista dos dez melhores poetas modernistas do Pará na promoção efetuada pelo Suplemento Literário do jornal Folha do Norte; em 1954, conquistou Menção Honrosa da Academia Paraense de Letras, com o livro A Palavra Esquecida, no concurso Vespasiano Ramos – o mais importante da APL; em 1955, viu seu livro Os Elementos do Verbo editado pela Gráfica Olímpica e lançado pela Editora Livros de Portugal, no Rio de Janeiro.
Neste volume (que poderia parecer um posicionamento estético ante a palavra, in totum) há bastante de autobiográfico, de enfoques rápidos sobre a natureza (não amazônica) e, principalmente, da situação do poeta ante as mudanças vivenciais e a morte. Mas sem nenhum desespero. Impávido ele está – diferentemente de Augusto dos Anjos, de Sá Carneiro, por exemplo – dois pólos (no Brasil e em Portugal) do pavor humano ante a destruição inevitável do homem.
Assim, Cauby Cruz se expõe: “… Amava a posse/de tudo, donatário que fui deste terreno./…/ Salta, Arcanjo,/cujo grito anunciando meu fim/eu mesmo gero, eu mesmo fabrico./…/ Sinto o nascer do mundo/e o fim. Como o peixe que sobe à tona para morrer.”
Desprezando rima e métrica (honrando, pois, sua época de liberdade formal) usa Cauby Cruz de linguagem metafórica suave. Impõe momentos de alto lirismo ou dialoga com pessoas ou com a palavra (verbo). É assim no primeiro poema, cujo título serviu ao livro Os Elementos do Verbo, como se lê a seguir, conforme J. Ildone.
***
Do livro Poesia do Grão-Pará (Rio, Graphia, 2001, seleção e notas de Olga Savary)
OS ELEMENTOS DO VERBO
Quando digo água quero que entendas fogo
a palavra se estende e deflora
um novo entendimento uma nova
forma insuspeitada mas viva além
de viva constantemente transformada.
Dependo não só dela porém da aceitação
em ti: o céu é inferno e mais que inferno
é este termo amar com que labuto
o meu pretérito alcança meu avô
já morto mas firme em mim, galopando.
E através dele vou, através de seus pastos
e porque digo pastos entenderás que é noite
e o ar me amansa diante de seus passos.
O que falo importa se alcançar tua carne
pois flutuar não serve. E é mister que invadas
e descubras porque foi que hesitei
e hesites comigo, sofras a mesma fome
a mesma água engulas, igual peixe
adores e meus cabelos te cubram.
Então, a primavera que invento poderá
ser tua e teu este mistério este cão
que à noite ladra coisas inteligíveis
e o gato, cujo canto acordará teu homem.
PRIMAVERA
Não invento nem antecipo
espero sem precipitação
sem dúvidas
porque sei que virá.
A casa informa sua presença tangível.
Minhas mãos são suas
como seu é o meu olho direito
tudo que vi, pensei.
Não invento nem antecipo
tenho o tempo nas mãos
e o futuro é isto que te entrego.
Minha comida, aqui.
Nada urge.
Cada segundo traz novos sucessos
as trombetas informam o mais recente
que esperei dois anos. Três. Não sei.
A borboleta espera. O pólen
a primavera precisam
do meu sopro sem vento.
Antecipar, jamais, eis que é chegado
o momento de abrir as pétalas vermelhas
e dá-las. E regá-las
não com hinos mas com bocas
famintas. É doce, poderás provar
e entretanto resistes. Não queres.
Nem eu. Primeiro, que o olhar
repouse, descubra o mundo
novo que se estende do
cálice à corola, regado em
púrpura e verde.
Depois o mel como seu sangue.
E escorrer da mão para que nos ausentes
me sintam vivo no cavalo de fogo.
DONATÁRIO
Donatário de terra imersa
procuro meus campos
meu boi que esqueci anos
mergulhado no mesmo gesto invicto
de mastigar, meu cão também
como também meus sapatos.
A terra desapareceu. Aqui ela ficava.
Rio de pedras várias cortava o terreno
mas eu não via as pedras. Amava a posse
de tudo, donatário que fui deste terreno.
Hoje, chão de peixes.
STOP
Não escondo minha face direita
pressinto porém o golpe
o sangue que correrá.
Desta janela escuto
sua presença. O vento
a mesa o quadro
invocam o pensamento
e o feixe de memórias
que entregarei de volta.
Minuto breve seja
um ai sem dor
mais de espanto que de penas
para que ninguém perceba
além desta mensagem
prematura. Mais fundo
neste verso antecipado.
Sentado em meu caminho
para a arrancada final
lanço meu braço inútil
tento mudar a ordem
retroceder o acontecimento
aproximado com anunciações:
Coroado entro no reino dos Céus
para amparar meu corpo decaído.