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Só aos oitenta anos , mais de meio século depois da publicação, em 1927, de seu primeiro livro de ficção, Um Pobre Homem,de 1927, Dyonelio Machado (1895-1985) conseguiu testemunhar um amplo interesse crítico e editorial por sua obra e a inclusão enfim de seu nome entre os grandes romancistas brasileiros do século XX. Não foi o bastante entretanto para popularizá-la. Seis décadas e uma dezena de romances depois da estréia (O Louco do Cati, 1942; Desolação, 1944; Passos Perdidos, 1946; Deuses Econômicos, 1966; Prodígios e Endiabrados,1980; Nuanças e O Sol Subterrâneo, 1981; Fada e Ele Vem do Fundão, 1982), o escritor gaúcho permanece conhecido sobretudo pela autoria de Os Ratos, de1935, saiu livro mais reeditado e acessível ao público. A história desta resistência intelectual é contada em O Cheiro de Coisa Viva, que reúne entrevistas, reflexões dispersas e um romance inédito: O Estadista.
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[FORTUNA CRÍTICA]
Sobre estudos, resenhas e comentários relativos a obras do autor, ler, na Fortuna Crítica, os artigos de André Seffrin, Ivan Ângelo, Jaime Cimenti, Jerônimo Teixeira e Salim Miguel.
{ANTOLOGIA]
Do livro O Cheiro de Coisa Viva (Rio, Graphia, 1995)
A LITERATURA COMO CONSCIÊNCIA DO POVO*
Eu entro mal no debate que Escrita/Ensaio promove. E quero confessar isso.
Ele se propõe nada menos do que um balanço historiográfico duma vasta área – a nossa terra – num tempo a começar regressivamente pelos nossos dias, com o objetivo de erguer um monumento: a História da Cultura Nacional e Popular. Nada mais patriótico. Mas também nada mais gigantesco.
Não estou exagerando. Homem de periferia (tomada esta na acepção geográfica) aturde-me a tremenda agitação que tumultua lá fora, no centro onde se operam todos os movimentos que condicionam a vida, portanto a vida literária e artística.
O roteiro não dissimula a dificuldade, quando espera, para a discussão, formar um bloco orgânico ao máximo e com isso obter a síntese almejada.
Minha inclusão entre os convidados para a tarefa só pode ser explicada pelo aparecimento, um tanto fortuito aliás, na literatura do homem unus solusque que eu sou. Mesmo assim, paradoxalmente, se conta comigo (ou pensa-se contar) para um trabalho de História e de Crítica!
E o mais estranho ainda é que me sinto tentado, além de lisonjeado, a concorrer com a minha parte numa empresa de tamanho alcance.
O roteiro está traçado, com a faculdade de ser seguido pelo entrevistado passo a passo através do questionário, observando-o item por item, como quem segue o balizamento duma longa estrada. Ou a seu alvedrio apanhá-lo no seu todo. Há mesmo a concessão de introduzir no contexto algo novo que viesse a merecer estudo e que aí não figurasse. Só isso traduz um grande desejo de acertar. Optei pelo primeiro método, adubado duma certa versatilidade.
Do primeiro item destaco a questão:
É correto ver os intelectuais como tradicional e historicamente cooptados pelo poder no Brasil?
Pede-se aqui um julgamento sobre a conduta. Do poder? Dos intelectuais? Está claro que tanto a um como aos outros cabe-lhes pleno direito, – ao poder, de cooptar, aos intelectuais de aceitarem a sua cooptação.
A verdade é que o poder público necessita dos intelectuais, na mesma medida em que os intelectuais precisam do poder público: é Horácio cumulado de todas as benesses, pagando-as a Augusto com a famosa ode.
Começa que a intelectualidade não é profissão. Por conseguinte, não se acha garantida, organicamente, pela prestação dum serviço determinado, perfeitamente definido, reconhecido como imprescindível, sujeito às leis da economia. Na realidade o intelectual – como tal – não está fixado a um trabalho compulsivo: é um errante. Trabalhando com uma mercadoria de consumo aleatório, de difícil colocação no mercado, pode ser tido como um produtor ocasional. Se, com o tempo, lograr certa estabilização, deve encará-la como obra do acaso, inteiramente excepcional. Nenhum intelectual pode, de saída, garantir seu êxito comercial, a despeito da sua capacidade. – Apenas nisso são profissionais: entram em falência como qualquer negociante mal sucedido.
Como indústria, a intelectual idade pouco vale. E quando valesse industrialmente, é que viria a soçobrar de todo, – porque cairia na fatalidade de produzir por encomenda, atendendo a gostos, a caprichos, mesmo a extravagâncias da sensibilidade, não completamente desconhecidas da patologia mental.
O poder público, hoje como no passado, explora essa situação e, por cooptação, traz ao seu grêmio o intelectual: é a vassalagem. Ao que um intelectual não deve prestar-se. Nem invocando uma vassalagem puramente sentimental, até certo ponto simpática. Mas, de qualquer maneira vassalagem, – para se desembaraçar da qual mais tarde muito suor custará ao cooptado. Tenho experiência disso.
A submissão porém do escritor ao poder público não se completa aí: põe-se ainda a seu serviço, pela forma indireta da estatização. Esta movimenta dois aparatos: a censura e os institutos do livro, – que os há, em esfera nacional e estadual.
Em ambas as frentes o poder exerce a sua policia: na censura, diretamente, – impedindo, suprimindo, confiscando; no instituto do livro mediante a figura altamente engenhosa da coedição, – que traz implícita a censura. E – o que é mais significativo – a coautoria, – pois, qual um Gênio, invisível mas presente, a coautoria marca seu comparecimento junto do escritor, ditando-lhe o que convém ou não convém pôr no papel.
Juvenal clamaria: Difficile est saturam non scribere!
(Peço perdão pelo latim. Não o faria, se estivesse a citar cousas em inglês…)
Esse primeiro item põe outra questão:
Quais as modificações na situação e na função social dos intelectuais brasileiros durante a última década?
Citei Juvenal: sátira primeira, verso trinta. Pois para mim ele representa o tipo do intelectual, em todos os tempos. É um pobre-diabo, sem direitos, como somos todos nós. E, todavia, tão requestados. A perseguição mesmo que se lhes move, o está provando. De resto, a sátira não é o gênero mais adequado para se granjear simpatia: nem para a sátira em si mesma nem para quem a compõe. E isso parece que se passou com Juvenal, que, em seu tempo, não mereceu amizade e louvor senão dum poeta pobre, mas talentoso, é certo: M. Valerius Martialis. Chamou-lhe meu caro Juvenal, facundo Juvenal.
Mesmo agora sua memória é denegrida: filho de liberto, dado às más companhias… Descontente e azedo porque marginalizado… Fracassado em provável carreira, empreendida antes de decidir-se, tardiamente, pela poesia… Por fim, alcançado pelo exílio por causa das suas sátiras.
Sim: essas sátiras não têm iguais, numa literatura entretanto que já as vinha cultivando com Lucídio, com Horácio, com Pérsio, sem levar em conta os epigramas que inundavam a Urbe. Mas elas denunciam um derrotado da vida, quem sabe um mau caráter… Verdade que nos põem frente a frente com o mundo dos necessitados, e isso afinal serve para o levantamento histórico duma época. Não abonam porém aquele que as escreveu e que se desejava valesse mais, sob o ponto de vista social e econômico. Como dar crédito às verdades que diz um sujeito, sem antes saber se, pela sua posição, ele as podia dizer? Para saber o que vale a sua palavra, é preciso pesquisar-lhe a vida: “pour savoir ce qui vaut sa parole, il faut chercher ce qu’aété sa vie”. Tão notável lição de crítica literária deve-se ao historiador Gaston Boissier. Já o padre Antônio Vieira muito antes se queixava de que não basta que as coisas que se digam sejam grandes, se quem as diz não é grande…
Mas há um engano: Juvenal não traça a miséria (muito discutida aliás) da sua vida, mas a vida miserável que vê em torno. Se soube bem encarná-la, deve-se ao gênio. E a este todas as homenagens pois.
Referi-me a Gaston Boissier. Um dos seus melhores livros, L’Oposition sous les Césars, traz um trabalho a respeito do poeta. E nesse ensaio o autor reproduz, para refutar, uma opinião de Victor Hugo sobre Juvenal, que ele considera a velha alma livre das repúblicas mortas – “la vielle âme libre des républiques morte”. Permita-se-me uma rememoração. Quando, há mais de cinquenta anos, eu percorria essas páginas pela primeira vez, pus esta nota à margem: os desclassificados de Juvenal já são os Miseráveis.
Está-se vendo que me valho da longanimidade do roteiro, que admite discussão de outros problemas, além dos contidos nos respectivos itens. Claro que devem contrair alguma relação com o tema em apreço. Salvo melhor juízo, penso que isso que foi dito não destoa tão gritantemente dos objetivos visados pelo debate.
De resto, tenho a impressão de que o item primeiro, na sua concisão, abrange a questão em seu principal aspecto, por isso que enfoca o ponto fundamental do problema: o intelectual, – o homem. O homem no modo de se comportar, quando de posse dos instrumentos que as circunstâncias mais variadas lhe puseram nas mãos. Tremenda é a força de vida dessa coisa que, se nem sempre foi tão frágil como agora, sempre constituiu objeto de manuseio. Essa coisa é o livro.
Mudo-lhe hoje o nome, que não lhe define forma ou constituição: chamo-lhe tomo, – porque então, representando apenas uma porção, integra-se na grande família da palavra escrita, como um bilhete, um telegrama, uma carta, uma revista, um jornal, um panfleto, um livro. É uma reprodução do que ocorre no nosso organismo: ao lado do tecido ósseo, do tecido muscular, do tecido nervoso, cutâneo, etc., que se caracterizam pela continuidade, o corpo humano possui um tecido descontínuo, com elementos dispersos por alguns órgãos. Como se chama ele e que é que ele faz? Chama-se tecido retículo-endotelial e pela função da granulopexia vela com estrênuo cuidado pela nossa vida.
É essa a tarefa da literatura.
In commune nati sumus. Esse é o primeiro princípio dos seres vivos, sejam homens, animais, até vegetais, pois todos somos gregários. Nesse enorme cadinho a massa mais heterogênea entra em fusão. Quem a decanta? A literatura, na sua maior expressão: literatura de ficção, literatura crítica e polemística, literatura científica, potencializadas todas pela arte. Só a literatura, só ela pela sua difusibilidade, pode, em sendo pura, assumir o compromisso de se achar sempre onde a cultura se veja na iminência dum perigo: para defendê-la, respaldada pela máxima cavalheiresca: cumpre o teu dever, suceda o que suceder!
Não é pequeno esse seu trabalho de criar a consciência do povo, num momento dado. Começa por purificar-se a si mesma. Com essa qualidade das coisas limpas, ela acaba impondo-se, a despeito de todos os entraves, que todos eles por fim se removem diante duma qualidade impoluta. É o que nos ensina a história literária, mesmo a do Brasil.
Eduardo Prado era um político. Mas grande escritor. Um escritor político, – ,estava no seu direito. O volume que conservo em substituição ao primeiro (que perdi) é uma dádiva de aniversário dum caro amigo, datada de mais de doze anos. A Ilusão Americana, nessa terceira edição, traz a observação logo abaixo do título da obra, na página de rosto: “A 1ª edição foi confiscada e suprimida por ordem do governo brasileiro.” De nada valeu a medida governamental. O livro continua vivo, com todas as verdades que encerra. Claro que são inúmeros os casos semelhantes. Mas devo relembrar o que ocorreu com o poeta que virtualmente nos deu a língua que falamos. O “qualificador” – era o título que designava o censor do Santo Ofício – dilacerou as páginas dos Lusíadas, como se faz com um cadáver na lousa de dissecção. Também esse sobreviveu à injúria.
Uma questão do Item 2 aborda as relações entre cultura e classes sociais.
Aquilo que, a meu ver, se nota dentro das relações entre o escritor e as classes sociais é um certo populismo. Com o fito de ganhar as massas para a leitura? O povo não lê. Estou me referindo a livros. Nem os preços desses convidariam a um gasto que, em regra, parecerá supérfluo a quem vive de salários tão reduzidos como os nossos. Escrevem-se livros com todo o semblante de populares; no tema, na língua. – E eles vão parar às escrivaninhas dos doutores!
Quero crer que tudo isso é feito na melhor das intenções. Tanto como essa regressão literária à infância e que empolga quase toda a nossa poesia.
Mas nessa declinação vão-se comprometer muitos elementos culturais. Já não há mais disciplina. E, com a perda desta, perde-se o sentido da Unidade, elemento básico da arte. O autor é um reivindicador iconoclasta. Na técnica de escrever, estraga, quando não suprime, tudo que encontra: a grafia, a ordem dos vocábulos, que muitas vezes servem apenas para aliterações, sem maior empenho pelo seu significado. A letra maíuscula foi abolida, como a pontuação; como se ainda fosse necessário tão fino retoque para acentuar tanto talento…
Ao idioma sucedeu uma pseudolinguagem. Ou o uso do dialeto e do linguajar. E, coisa mais grave, o linguajar carreou o baixo calão, o chulismo, a palavra obscena.
Nenhum escritor pode eximir-se de usar um palavrão. O episódio que ele retrata lho impõe. A injúria (a kakologia dos gregos); a palavra porca de Cambronne, precisava figurar numa obra épica. Mas o autor desta gastou páginas para explicar seu arrojo. Nós hoje, mais populistas, não nos importamos com tais frioleiras…
Um apelo, dum caco velho como eu, aos moços, que eu tanto prezo: salvem nossa língua. Salvem nossa novelística. Salvem a poesia de Castro Alves, de Gonçalves Dias, de Raimundo Corrêa, de Salusse, de Olavo Bilac, desse nobre mutilado, que um jovem irreverente, o meu saudoso e famoso amigo Mário de Andrade, aconselhava que não voltasse a escrever versos: Vicente de Carvalho. Salvem a poesia de Tomás Antônio Gonzaga, de Zeferino Brasil, Mário Pederneiras, Alceu Wamosy. E de muitos, muitos outros.
Eu tenho falado em oral, palavra oral, oralidade. Sabem?… Ora senão! Mas não custa insistir: sabem por que a literatura clássica se perpetuou, mesmo quando os autores não escreviam, não eram pois escritores? Pela poesia. Pelo seu ritmo. Pus num desses meus pobres livros de ficção uma situação em que um dos meus Gregos iniciava com uma das mãos um gesto lento, a completar a ondulação que se sente nesses corpos humanos, mesmo em repouso. Onde poderia ter visto essa música do corpo, que se passava há quase dois mil anos, numa Grécia já acabada? Nos seus mármores. Só podia ser isso.
Sólon, Licurgo escreviam suas constituições em forma de poesia. Com a técnica de agora, nem quero imaginar os governantes compondo em versos suas leis…
É do item 3 a interrogação:
“Como se coloca o imperialismo na reflexão sobre a cultura?”
Resposta:
De maneira a nos desnacionalizar.
Para ele convergem todos os nossos olhares. E como ele tem ainda seu território de eleição na poderosa nação do norte, esta se transforma na Meca da atualidade. Como ela é o centro continental da tecnologia, o ideal é conhecê-la, se possível imitá-la. Com uma invejável predisposição à maquinaria, desde Benjamin Franklin com sua pandorga, ela põe-se em primeiro lugar dentre as demais nações da terra pelo número de seus automóveis (já se fez nessa base uma das nossas campanhas eleitorais), pelas dimensões dos seus foguetes espaciais e seus mísseis. Sua língua exerce enorme atração. Eu vi em Brasília, a capital do nosso país, a letra W marcando qualquer coisa e escrita por extenso desta forma: dáblio.
O W é o V dos alemães. Na nossa língua sempre foi chamado o que ele de fato é: um duplo V. Também no francês: double V. No inglês dubliu. Não é letra própria do alfabeto inglês: foi importada da França no século 11° (Webster). E é preciso ver como os bem-falantes torcem, deliciadamente, a língua para saborear toda a musicalidade do novo vocábulo português dáblio, – aliás já incorporado ao nosso léxico.
Claro que isso só serve para enriquecer uma língua pobre como a nossa… Tolice repetir a ilusão de Camões: “na qual quando imagina/com pouca corrupção crê que é a latina…” Ilusão de renascentista. Mas o diabo é que o Bloch et Wartburg, dicionário etimológico da língua francesa, quando busca a história dos seus vocábulos vira também em dicionário comparativo. E é aí onde se vê que, dentre todas as línguas românicas, é o português que concorre com a maior soma de palavras que poucas alterações sofreram na transplantação do latim. Assim saeculum, que deu siécle e siglo, acabou voltando à forma latinizada século. – Vê-se pois que o poeta não estava apenas a devanear…
Apesar de haver, senão introduzido, ao menos divulgado Dickens entre meus amigos, não sou versado numa língua que não possui regras fixas de pronúncia, obrigando a um conhecimento individual da pronúncia correspondente a cada vocábulo. Acho também muito primária a sua flexão verbal. Não vou a ponto de emitir opinião tão radical como a de Eça de Queirós, ao referir-se ao inglês norte-americano, que de resto é o que está substituindo pouco a pouco o português entre nós. Diz o grande humorista: “… algumas palavras em inglês e muita saliva – eis o que é a língua americana.”
Todavia, devemos mostrar-nos gratos a essa língua, que nos obriga a silabar um pouco do latim, – que gerou a nossa e se acha heroicamente esquecido. Campus, podium por exemplo. Ou então nos leva a desencavar belos vocábulos vernáculos, virtualmente mortos para nós, como comunidade, comunitário. Usados hoje com uma perseverança de tal maneira estereotipada, com orgulho tão ingênuo, que não nos deixam outro sentimento senão o da comiseração.
Sei que não posso atirar a primeira pedra: minha geração foi também poluída pelo gosto e uso de termos e expressões alienígenas. E pelas mesmas razões: a enorme significação cultural do país donde provinham. No caso era o francês.
A dirimente, se cabe, ou mesmo a atenuante encontram-se no fato de estarmos então sendo usufrutuários duma cultura. E não se tratar dum idioma inteiramente ádvena. Contávamos com uma origem comum: éramos irmãos. Além de que agíamos assim por necessidade, por verdadeiro estado de necessidade, mais do que por diletantismo. Donde nos vinha a cultura? Da França, que nos exportava a própria e a que não era sua, mas que armazenava para seu uso, – e, desse, o uso dos seus tributários.
O satírico de Francesismo encontrou-se uma vez em Paris (ou noutro lugar qualquer da França) com um divulgador de ciência elementar, para emprego nas escolas de curso secundário: Langlebert. Já de certo modo o conhecia, através dos seus livros, adotados em Portugal, – como igualmente no Brasil do nosso tempo. O mesmo Eça de Queirós necessitava duma obra que o ajudasse numa reconstituição do passado clássico. Provavelmente consultou Oliveira Martins sobre isso, porque, numa carta a ele, apressa-se em noticiar: “Excelente, o Friedlaender! Já tenho a minha estradinha romana, com a sua estalagem, a sua tabuleta, a sua inscrição convidativa, invocando Apolo”… Evidentemente que se trata de Moeurs Romaines d’Auguste aux Antonins, necessariamente inculcado pelo amigo, um historiador. Com toda certeza também é essa tradução francesa, em quatro volumes, editada parceladamente nos anos de 1865, 1867, 1874, visto que o romancista não conhecia o alemão.
Esse o tipo de aulicismo, se a tanto pudesse chegar o entusiasmo que nos ligava à literatura e à língua dos Franceses. De nenhuma maneira pode-se comparar com a invasão maciça não só da língua mas dos costumes, da propaganda como indústria, de mercadorias, objetos de uso, que se derramam sobre nós, como uma ganga mineral, resíduo praticamente inaproveitável, devido a uma impossibilidade intrínseca de integração. Cingindo-se à literatura, posso avançar que a produção brasileira sujeita à influência norte-americana, por exemplo, constitui um caso de superfetação.
Nada há de vil na casa de Júpiter, reconhecia a sabedoria popular do passado. Vamos esperar do tempo que, dialeticamente, leve nossos compatriotas a tirar uma roupa nova, reformando a usada.
Custa-me transigir com os que maltratam a língua. Fiz minha estreia nas letras antes dos vinte anos, quando reinava um enorme escrúpulo em matéria de gramática. Ao aparecer um livro, a primeira coisa que a crítica assinalava era o português. Um solecismo invalidava a obra. Os galicismos eram corridos com fúria, como se corre com pedradas na rua os cães ladrões. Essas coisas ficam.
A fobia pelo estrangeirismo levava os críticos a ver com suspeição qualquer termo menos correntio: quem anda aos porcos, tudo lhe ronca. Euclides da Cunha teve de defender-se da acusação de haver semeado na sua grande obra – Os Sertões – neologismos ou palavras tiradas ao francês. É menos feliz, a meu ver, quando se defronta com a regência do verbo custar, numa passagem que mesmo a ele não satisfaz: deu prova entretanto do escrúpulo que a nenhum escritor poderia faltar, e que constituía a tônica, como disse, duma época.
O problema me é caro. Mas somente posso vê-lo bem (ou satisfatoriamente, ficaria melhor) recorrendo mais uma vez às coisas passadas. É uma contingência de quem envelhece achar-se voltado para o que já foi. Muito viu, porque muito viveu.
De todas as coisas comuns que se oferecem aos habitantes dum mesmo país, a que lhes é mais comum é o idioma. Apesar da sua proliferação em dialetos. Eu já convivi, demoradamente, numa situação especial, com brasileiros de todas as regiões. Maranhenses, pernambucanos, amazonenses mato-grossenses, paulistas, mineiros, baianos, catarinenses cariocas, gaúchos como eu, rio-grandenses-do-norte, paraibanos, cearenses, acreanos, etc. Nessa recapitulação, vejo-lhes a imagem inolvidável. Toda essa gente fala o que pensa que é a sua língua. E não é: são usuários da grande língua da nação, que funde todas as diferenças étnicas nu’a massa. A ciência não estava errada nem fantasiando, quando seguia a marcha dos povos pelos vocábulos que eles iam deixando na sua longa trajetória sobre a terra. Tudo que me foi dado apanhar, sem ser um historiador, foi que a desagregação de Roma começou em plena república, quando um Cícero, por exemplo, põe-se a trocar, pelo menos na linguagem coloquial, o latim pelo grego.
O português tem boa cepa. Um dos seus ramos, o brasileiro, também. Comporta, este, transplante, enxertia, poda. Mas não lhe toquem no tronco nem nas raízes. – É donde lhe nasce a seiva.
Nesta altura, os organizadores deste debate já hão de estar mais do que convictos de que foi em pura perda a minha convocação para semelhante empresa. Para dizer a verdade, me atordoa o número e a diversidade de ângulos que oferece tema, na essência tão simples, como é o da cultura nacional e popular.
Fico matutando na reunião destes dois adjetivos, na aparência redundantes. Mas enfim: é dever amarrar o burro à vontade do dono. O caso é que a coisa não é tão fácil assim.
É que não configuro bem o caso.
Fazer de cada cidadão um homem culto? Seria o ideal. Foi o programa de Sócrates.
Devia-se pois começar pela instrução.
Isto já está ocorrendo: basta pesar o vulto de jovens de ambos os sexos que se inscrevem no vestibular, conquanto enorme seja o volume dos que não passam. Mas já há a ideia.
Muito antes de, pela profissão, me considerar obrigado a versar coisas de psicologia, eu já sabia que as ideias tendem a tornar-se atos, verdadeiro truísmo ao alcance de todos.
Essa questão do vestibular, pelo menos na província, está chegando ao ponto de fratura. Os examinadores queixam-se do mau preparo dos candidatos, os candidatos queixam-se da má qualidade do ensino que se lhes propiciam.
A situação implica, segundo estes últimos, um problema econômico.
O ensino secundário não se encontra uniformizado: há cursos bons e cursos inferiores. O que quer dizer que há caros e baratos, – ou menos caros. O resultado é que somente as classes privilegiadas, com renda maior, se asseguram uma passagem para o ensino superior.
E este também é outro problema.
Há poucos dias, aqui, uma alta figura do nosso empresariado foi a público, para exortar, delicadamente, as universidades a ministrarem um ensino melhor. Porque o que está acontecendo para alguns setores é que o empresário precisa de pessoal técnico, e o que as academias lançam no mercado é de qualidade inaproveitável.
Isso, no que toca à instrução.
Ainda não é a cultura: o velho Machado não era doutor e foi um dos nossos romancistas mais cultos. Eça de Queirós traçava a biografia mais sintética que conheço. A propósito do seu amigo Ramalho Ortigão, e não para valorizar os diplomas acadêmicos: “Não é bacharel e tem saúde.”
Por mais que se queira eludir, numa era tecnológica, cultura importa em conhecimentos de toda ordem, integrados organicamente porém pelo engenho artístico. É como o escritor utiliza o que sabe, tal qual um técnico, a basear-se na ciência especializada que auferiu na escola. Utiliza e transmite, donde resulta seu caráter eminentemente social.
Isso nos coloca no problema do livro de ficção.
Parecerá que estou dando ênfase discriminatória à categoria. Mas é que a estória e o verso constituem as formas mais acessíveis à leitura, porque mais queridas.
Um industrial do livro, no Rio, me dizia há mais de trinta anos: o autor que mais lucro dá ao editor é aquele, do qual se vendem apenas dois exemplares por ano, mas se vendem sempre. É Joaquim Manuel de Macedo, com Moreninha, Castro Alves com Espumas Flutuantes.
Li isso, usando ainda as calças curtas do menino de colégio. E, se não o leio agora, é por falta de tempo. Não critico, não me atenho a escolas. Povo, que sou, devo encontrar mais sabor nesse lirismo espontâneo e nesses quadros simples da vida, do que um nefelibata ou um gourmet, em luta com um gosto ultrarrefinado.
Vamos melhorar sempre e cada vez mais a nossa literatura – vencendo, porém, se possível, a tentação de declinar ao computador o trabalho de escrever nossos livros. Vamos pleitear novas formas de difusão do livro. Os periódicos de todos os feitios constituem um instrumento decisivo nessa campanha. Ninguém ignora os óbices que se lhes antolham, tanto quanto ao livro: custo da produção, embaraços com leis, com que a literatura, por sua essência, não se compadece. Temos um dever para com o público. Ainda aqui cabe a máxima cavalheiresca: cumpre o teu dever, suceda o que suceder.
Como um rio, que leva suas águas mais longe, apesar dos escolhos, caminhemos. De resto, nossa sina é caminhar.
Ainda há poucas semanas, falando para moços numa entrevista, eu tomava conhecimento duma escola literária (ou coisa assim) que estabelecia, segundo um dos seus corifeus, que “vocação literária supõe uma atitude de rebeldia diante da realidade real”. Atitude de rebeldia ante uma determinada realidade admito. Mas a rebeldia sistemática, sem apreciação dialética da situação que se lhe oferece, como parece ser a preconizada por esse escritor, constitui o caminho mais fácil de tirar à rebeldia todo o mérito. Critério e responsabilidade é o que mais se pode pedir ao orientador da opinião.
É fato indiscutível que, mesmo de dentro da sua modéstia, o escritor realiza esse papel. Tal não sucedesse, e seus livros e escritos em geral não se veriam tão visados pela perseguição. Rebeldia sem propósito, como originalidade (a que se recorre infelizmente vez por outra) é coisa de muito mau gosto.
Vai longa esta charla, que sou o primeiro a considerar sem sentido prático. Aos amigos de Escrita, que indiretamente a proporcionaram, cabe o alvitre de lançá-la à cesta dos papéis amarrotados.
*Título original. Resposta a inquérito sobre cultura brasileira. In: Escrita-Ensaio. São Paulo, pp. 23-26, ano I, 1977.