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Pintor e poeta – segundo Murilo Mendes – Ismael Nery ( Belém, 1900 – Rio de Janeiro, 1934) tinha sangue português, holandês e índio. Permaneceu em Belém só até os nove anos de idade, porém sempre nostálgico da cidade natal, característica de paraenses. Lá tudo era mais sublinhado, com relevos fortes, cor, peso e sabor, com mais caráter e vibração geral, segundo o poeta-pintor. Em 1909 muda-se para o Rio de Janeiro, onde a mãe, de família rica, possuía muitos imóveis em Madureira. Mas já carrega, desde Belém, a influência de sua formação. Desenha desde menino, incentivado pela mãe Marieta Macieira Nery. Estuda nos colégios Antônio Maria Zacarias e Santo Inácio. Convidado a representar o Brasil em importante Congresso Internacional em Copenhague, seu pai Ismael de Sena Ribeiro Nery, oficial-médico da Marinha, na patente de Capitão-de-Fragata, retornando, morre a bordo do navio, na costa de Santa Catarina, onde é sepultado longe da família. Viúva, sua mãe torna-se irmã da Ordem Terceira de São Francisco, missionária para os índios do Alto Purus e Alto Acre, passando a chamar-se Irmã Verônica.
Em 1917 freqüenta a Escola Nacional de Belas Artes. Com a epidemia da gripe espanhola, morre seu único irmão, João, em 1918. Em 1921 Ismael viaja pela Europa e Oriente Médio. Na volta é nomeado desenhista da Seção de Arquitetura e Topografia da Diretoria do Patrimônio Histórico Nacional do Ministério da Fazenda, onde conhece o poeta Murilo Mendes, que se torna seu amigo até a morte. Casa-se com Adalgisa Cancela Noel Ferreira, que passa a se assinar Adalgisa Nery, nome com que ficou conhecida como poeta e deputada. A casa de ambos, Rua São Clemente 170, em Botafogo, vira ponto de encontro de amigos intelectuais como Murilo Mendes, Mário Pedrosa, Guignard, Burle Marx, Cícero Dias, para discussões sobre filosofia, arte, literatura, religião. Figura fundamental do Modernismo, polêmico e de personalidade ímpar, criativo nos mínimos detalhes, até em suas indumentárias e nas de Adalgisa, era dotado de fino senso de humor, desabando às vezes em profunda melancolia. Nery, marcado de grande fervor católico, teve vida breve, dramática e intensa, influenciando seus contemporâneos de maneira vigorosa. Poesia e pintura amalgamaram-se na mesma densidade, significado, de clima soturno, original e única. Perto da morte, pediu ao amigo Murilo Mendes que destruísse desenhos, pinturas e poemas, no que não foi atendido pelo zeloso amigo. Sorte nossa, o que proporcionou apresentar a importante mostra, em 2000, na FAAP-SP e CCBB-RJ, Ismael Nery 100 – A Poética de Um Mito.
Em 1927 viaja com a mulher e o primeiro filho Ivan para a Europa, onde permanece por alguns meses, entrando em contato com André Breton e tornando-se amigo de Chagall e Villa-Lobos. Esta viagem influencia muito sua obra, entrando no surrealismo. Na volta, em 1929, realiza a primeira exposição individual, inaugurada em 7 de setembro, no Palace Theatre, em Belém do Pará (vinte obras). A escritora e jornalista Eneida registrou o evento no jornal Estado do Pará, no dia posterior. Sua segunda exposição é realizada no Palace Hotel do Rio de Janeiro, com 31 pinturas e mais aquarelas e desenhos, organização da Associação dos Artistas Brasileiros. Em 1930, terceira exposição individual (cem desenhos e guaches), no Stúdio Nicolas, fotógrafo na Cinelândia, Rio de Janeiro. No mesmo ano realiza exposição coletiva organizada pelo governo brasileiro, no Nicolas Roerich Museum de Nova York, juntamente com Anita Malfati, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, entre outros. No final do ano começa a adoecer. Vai viver em Correias, Petrópolis, com a mulher Adalgisa (grávida de segundo filho, Emmanuel). É internado no Sanatório de Correias, pelo agravamento da tuberculose. Nasce Emmanuel em 3 de julho de 1931. Participa do Salão Revolucionário, em 1931, com sete obras. Pinta pouco, desenha mais, produz poemas. Permanece por 2 anos no Sanatório, deixando-o em julho de 1933. Volta ao Rio, considerado curado radiologicamente. Participa com seus trabalhos da exposição da SPAM – Sociedade Pró-Arte Moderna, em São Paulo. No fim do ano tem uma recaída: a tuberculose pulmonar agrava-se. Surge uma úlcera na glote e, em seguida, na laringe. Falece no Rio, no dia 6 de abril de 1934, aos 33 anos.
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Do livro Poesia do Grão-Pará (Rio, Graphia, 2001, seleção e notas de Olga Savary)
EU
Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas
Eu sou o que não existe entre o que existe,
Eu sou tudo sem ser coisa alguma,
Eu sou o amor entre os esposos,
Eu sou o marido e a mulher,
Eu sou a unidade infinita,
Eu sou um deus com principio,
Eu sou poeta!
Eu tenho raiva de ter nascido eu,
Mas eu só gosto de mim e de quem gosta de mim.
O mundo sem mim acabaria inútil.
Eu sou o sucessor do poeta Jesus Cristo
Encarregado dos sentidos do universo.
Eu sou o poeta Ismael Nery
Que às vezes não gosta de si.
Eu sou o profeta anônimo.
Eu sou os olhos dos cegos.
Eu sou o ouvido dos surdos.
Eu sou a língua dos mudos.
Eu sou o profeta desconhecido, cego, surdo e mudo
Quase como todo o mundo.
CONFISSÃO
Não quero ser Deus por orgulho.
Eu tenho esta grande diferença de Satã.
Quero ser Deus por necessidade, por vocação.
Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo,
Nem com o limite de coisa alguma.
Tenho fome e sede de tudo,
Implacável.
Crescente.
Talvez seja esta a minha diferença de Deus
Que tem fome e sede de mim,
Implacável,
Crescente,
Eterna
– De mim que me desprezo e me acredito um nada.
POEMA
As gargalhadas
Os prantos
Os gritos de admiração e de pavor
Os gemidos de gozo e de sofrimento
O murmúrio do mar
O troar dos canhões
E todos os barulhos do universo
– Tudo isto penetra no meu ouvido
Como no ouvido
De uma estátua de pedra de olhos fechados,
Imóvel,
Que presidisse a vida.
Que registrasse o tempo
E que pensasse
– O dia em que visses essa estátua olhando
Poderias afirmar – não existe Deus
E terias então o direito de julgar.