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Sobre O Negro Brasileiro, de Arthur Ramos (Rio, Graphia, 2001: 2003, 5ª ed.) In: Jornal do Brasil, caderno Ideias, 28/4/2001, p. 4.
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NEGRO
Lena Frias
Obra de antropólogo brasileiro que frequentou terreiros com Jorge Amado é uma fascinante iniciação à cultura afro-brasileira
Embora o etnólogo, criminalista e patologista Raimundo Nina Rodrigues seja o pioneiro dos estudos científicos do negro no Brasil (sua obra mais conhecida, O animismo fetichista dos negros da Bahia é de 1900), foi Arthur Ramos quem consolidou esses estudos numa obra extraordinária, fonte essencial – e nem sempre citada – da vasta bibliografia que lhe foi posterior.
Arthur Ramos, que nasceu em Alagoas, em agosto de 1903, era médico psiquiatra, antropólogo, etnólogo e folclorista. Intelectual atuante, integrava o inquieto grupo que, a partir dos anos 20, agitou a intelectualidade brasileira e cuja influência até hoje se faz sentir. Muitas dessas figuras, inclusive o próprio Arthur Ramos, ganharam projeção e estatura internacionais. Dessa geração brilhante, fazem parte estrelas como Jorge Amado, Luís da Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Graciliano Ramos, Afrânio Peixoto, Eneida, Astrojildo Pereira, Berta Luft, Edson Carneiro.
Alinhado com a efervescência que gerou a Semana de Arte Moderna de 1922, com as ideias do revolucionário educador Anísio Teixeira e com a crítica às estruturas sociais e culturais vigentes – que motivariam episódios como o Manifesto Pau-Brasil de Oswald de Andrade, o manifesto regionalista de Gilberto Freyre e os provocadores congressos afrobrasileiros -, Arthur Ramos lançou-se à pesquisa de campo, na busca das matrizes da cultura negra diretamente em seus mananciais.
Foi assim que se juntou a Jorge Amado em andanças pelos candomblés baianos. Nesse passo, penetrou na intimidade das casas de culto e acabou fazendo o santo no terreiro do Gantois, consagrado filho do orixá Ogun.
O negro brasileiro, primeiro livro de Arthur Ramos, cuja edição inaugural veio a público em 1934, reflete esse envolvimento e as experiências dele resultantes. Obra na qual se constata o olhar respeitoso do antropólogo sobre ritos e cultos de terreiro, até então referidos ou relatados, inclusive por Nina Rodrigues, a partir de uma ótica racista e discriminadora. Na mesma época em que Arthur Ramos a estudava, a cultura negra, em especial nos aspectos religiosos, era perseguida e tratada como assunto de polícia ou do âmbito da higiene mental.
O negro no Brasil – um ensaio de etnografia religiosa – foi a primeira publicação da Biblioteca de Divulgação Científica da editora Civilização Brasileira, dirigida pelo antropólogo. A que se seguiriam outras obras suas, igualmente fundamentais, entre elas O folclore negro do Brasil, As culturas negras do Novo Mundo e O negro na civilização brasileira. A morte prematura de Arthur Ramos em Paris, aos 46 anos, interrompeu a série que, segundo seus planos, incluiria outros estudos. Cada um dos títulos que vieram à luz é, porém, um indicador de caminhos.
O relançamento do clássico O negro brasileiro repõe o antropólogo na pauta da atualidade. O que é oportuno, uma vez que o seu tema – o papel do negro na sociedade e na cultura brasileira – está longe de se esgotar.
Esse livro de estreia já revelava a impressionante erudição de Ramos, considerado a seu tempo “um jovem prodígio”. Ele examina a questão do negro nos Estados Unidos para, em seguida, deter-se em dados sobre todo o continente americano, até chegar ao negro no Brasil. A partir daí, abre um precioso painel de informações e observações. Procura manter a postura não comprometida de pesquisador, mas a força da liturgia jeje-nagô, os ritos malês, as práticas mágicas, a dança e a música dos candomblés cedo o empolgam. O Ogun do Gantois toma então o lugar do etnólogo e seu livro transmuda-se numa barca de iniciação, navegando pelos terreiros fascinantes da cultura negro-brasileira. Uma viagem que será ainda mais profícua se, ao presente lançamento, seguir-se a reedição de toda a obra desse antropólogo tão importante para os estudos brasileiros e a valorização da nossa identidade.
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SOBRE Sem Fantasia: Masculino-feminino em Chico Buarque, de Maria Helena Sansão Fontes (Rio, Graphia,1999). In: Jornal do Brasil, Caderno B, 4/4/1999, p. 10
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RASGANDO A FANTASIA DE CHICO BUARQUE
Lena Frias
Professora lança livro que traduz o sentimento masculino-feminino na obra do compositor
Chico Buarque de Holanda tem lá seu modo retraído, meio avesso a abordagem ou tietagem. Difícil captar nele um sinal que autorize intimidade ou até aproximação, muito menos avanços sobre a privacidade. As exceções são raras – por exemplo, quando encontra amigos já incorporados aos seus afetos, ou figuras como Zica da Mangueira com aquele jeito de mãe do mundo. Aí sim, os olhos brilham, vem o sorriso amistoso, bonitaço e, segundo os que o conhecem, Chico incorpora um certo jeito moleque, chegado à gozação. Maria Helena Sansão Fontes, doutora em literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora do colégio Pedro II, passou três anos escrevendo o livro Sem fantasia. Trata-se de sua tese de doutorado, um cuidadoso ensaio sobre o masculino-feminino na obra de Chico Buarque, lançado esta semana pela editora Graphia, dentro da série Temas e Reflexões. Maria Helena acompanha a carreira de Chico desde a adolescência – de ambos. “Havia a identificação com o que ele dizia e cada vez me encanto mais.” Sabe de cada letra, cada poema, cada livro – do texto e do sub-texto. Em Sem fantasia ela desvenda aspectos inesperados do pensar e do sentir de Chico Buarque, como se penetrasse em sua alma. De onde essa professora de literatura conheceria tão bem Chico, a ponto de vasculhar as intenções ocultas de sua obra? Quantas vezes conversou com ele sobre o livro? “Infelizmente para mim eu nunca troquei uma só palavra com Chico. Sou meio tímida e ele parece avesso a esse tipo de aproximação. Uma vez até passei por ele quando os dois caminhávamos no Jardim Botânico. Íamos em sentidos opostos. Eu finalizava meu livro e fiquei estática olhando para o Chico. Acho que ele notou minha perturbação e seguiu em frente.”
Seguiu em frente sem saber que aquela pessoa extasiada diante de sua bela figura era talvez a única que lhe conhecia de fato a obra, no verso e no anverso. Que lera e relera Estorvo, romance inaugural de Chico Buarque e tudo o mais que Chico escrevera, criava ou sobre ele se publicava. “Li Estorvo diversas vezes e com o maior prazer. Eu gostei tanto que fiz uma monografia sobre o livro durante meu doutorado. Interessante é que o Chico prosador é bem diferente do poeta, como se fossem duas pessoas distintas, embora tanto em Estorvo quanto em Benjamim, a sensibilidade poética obviamente embase o texto”. Chico seguiu em frente naquele dia, sem adivinhar que a moça a mirá-lo já o sabia tanto que o nome do livro dela, Sem Fantasia, tanto remete à canção homônima, quanto revela a intenção de desnudar objeto da paixão. “Ele se expondo, sem máscara, o que é, afinal, o teor da própria música e da própria obra poética.”
O livro de Maria Helena Sansão Fontes, dirigido “inicialmente aos meios acadêmicos mas que eu espero venha a alcançar as pessoas em geral, além dos interessados em Chico Buarque e na poesia”, propõe uma discussão sobre a função poética da linguagem, “nela compreendidos todos os recursos gráfico-visuais-linguísticos-sonoros que contribuem para a poeticidade dos versos de Chico Buarque”. Já considerara o tema como tese de mestrado, mas esbarrou em dificuldades “na aceitação de letras de música como textos literários, uma discussão que hoje está inteiramente resolvida na minha cabeça.” Obteve seu título de mestra com um estudo sobre a representação da mulher em Guimarães Rosa, “outro fascínio meu.” Ao longo do tempo e das análises para o doutorado, apresentadas no livro Sem Fantasia, Maria Helena foi, porém, reafirmando a sua convicção de que existe “uma elaboração formal muito grande no texto da música popular, em particular em Chico Buarque, objeto do meu trabalho. Não tenho dúvida de que se trata de poesia. O que não quer dizer também que eu esteja generalizando,” acautela-se. Com razão, diante da mediocridade de grande parte dos sucessos atuais da música popular.
Em Sem Fantasia, a autora revela Chico Buarque de Holanda em dez capítulos, através das letras-poemas. Na introdução do ensaio ela enfatiza a presença arquetípica da Grande Mãe e do Grande Feminino na obra do compositor: “Sobrevivem em Chico os arquétipos inconscientes e primordiais relativos ao Grande Feminino, que impulsionam seu gesto criador e fazem com que se revelem tanto a necessidade de valorização da mulher como deusa e fêmea, como a angústia de sua contraparte, a mulher castradora e devoradora, uma face terrível da Grande Mãe”. Além do gosto pessoal, pesou na escolha do tema central do livro um outro fator: “Os estudos sobre Chico são irrisórios em quantidade e restritos quanto à totalidade da obra. Considerei pertinente trabalhar sobre as múltiplas manifestações da visão feminina e da visão do feminino em Chico Buarque, como uma contribuição à pesquisa da literatura de língua portuguesa.” A autora aborda, por exemplo, política e marginalidade, ao examinar a transgressão social e as conotações políticas, em letras como Homenagem ao Malandro, Pelas tabelas e Carolina. Fala sobre o amor e a descontinuidade dos seres no dilaceramento poético de canções como Pedaço de mim e Trocando em miúdos. Comenta a valorização da mulher transgressora e a empatia. com seu universo anticonvencional e provocador em músicas como Mulheres de Atenas, Geni, Ana de Amsterdam e Angélica – esta em parceria com Miltinho e alusiva à dor da figurinista Zuzu Angel pelo assassinato do filho Stuart durante os anos de chumbo. Estuda a matéria-prima do fenômeno lírico na poética de Choro bandido e João e Maria, parceria com Sivuca. Sugere um diálogo de gerações através de composições como Quem te viu, quem te vê, Paratodos e Filosofia. “Na obra buarquiana o eu-masculino parte em solidariedade à mulher, expondo as faces que seus arquétipos impulsionam e sua consciência criadora tece nas entranhas femininas do texto poético, através do qual Chico se desnuda”.