Seleção de obras e autores da Graphia Editorial.
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Depois de exercer a crítica literária jornalística no início de sua carreira de escritora, a influência, notória e marcante, de Lucia Miguel Pereira (1901-1959) para a maioria do autores que fizeram a poesia, a ficção e o ensaismo brasileiro na primeira metade do século XX, expande-se na sua obra de pesquisadora em três livros de referência da cultura nacional: Machado de Assis; A Vida de Gonçalves Dias; e História da Literatura Brasileira: Prosa de Ficção. Na série Revisões desta editora, a trajetória crítica de Lucia é recordada em duas coletâneas organizadas por Luciana Viégas: A Leitora e Seus Personagens e Escritos da Maturidade.
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[FORTUNA CRÍTICA]
Sobre estudos, resenhas e comentários relativos a obras da autora, ler, na Fortuna Crítica, os artigos de Antonio Candido, Cecília Ameida Salles, Fábio de Souza Andrade, Italo Moriconi, Maurício Melo Júnior, Paula Barcellos, Rolando Morel, Rosane Pavan, Vilma Areas e Virgilio Moretzsohn.
[ANTOLOGIA]
Do livro A Leitora e seus Personagens (Rio, Graphia, 2005, 2ª. ed.)
REALISMO E ESPÍRITO NACIONAL
(Publicado originalmente, sem título, no jornal Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 6/1/1935, p. 12, coluna “Livros”.)
Se as palavras tivessem para toda a gente o mesmo sentido, muitos conflitos e talvez muitos dos entendimentos superficiais (uns e outros podem ser baseados em equívocos) desapareceriam. A vida se tornaria mais fácil. Na ordem material, isso é muito simples. Quando se fala de uma cadeia ou de uma casa, não há dúvidas possíveis. Os interlocutores se compreendem perfeitamente. Mas desde que o vocábulo não tenha apenas um sentido estritamente objetivo, tudo se complica. Já não me lembro onde li que, quando um homem diz “eu te amo” e uma mulher responde “eu te amo”, cada um se refere a um sentimento diferente, e talvez oposto. Está aí o caso do equívoco generoso, ao menos provisoriamente.
O subjetivismo é o eu, e o eu é o mistério, a impenetrabilidade.
Lembrei-me de tudo isso lendo um espirituoso e oportuno artigo sobre o movimento migratório sul-norte da literatura, publicado recentemente no Jornal do Brasil pelo Sr. Ribeiro Couto (um bom ponto para os acadêmicos!).
Realmente, de uns vinte anos a esta parte, o eixo literário do país tem se deslocado. Caminhamos de Jeca Tatu a João Miguel. Será isso fruto de um mero acaso que faz nascerem ora aqui ora ali as inteligências criadoras, ou provirá de um aguçamento de sensibilidade gerado pelas duras condições de vida dos Estados do norte?
Seja como for, o fato existe. O nortista deixou de ser, para nós do Sul, o “flagelado” esquálido ou o bacharel arrivista para se tornar um homem que pensa e que sofre.
O que o sr. Ribeiro Couto estranha, e com razão, é a significação nacional que se quer emprestar a um grande surto regionalista, é teimar-se em descobrir a expressão do chamado “espírito brasileiro” em livros nitidamente nordestinos.
Há aí uma confusão evidente entre brasilidade e regionalismo. Para esclarecê-la, seria indispensável definir exatamente palavras que são como a eletricidade: todos se servem delas, mas ninguém sabe o que são. Espírito brasileiro e realidade brasileira. O primeiro deve ser manifestação da segunda. Mas esta, o que é? Será talvez mais acertado pô-la no plural. Realidades brasileiras, isso sim, tem sentido claro. Mas nesse caso o “espírito brasileiro” é o espírito regional, multiforme. Tem uma significação diferente para cada um de nós; ainda não é, nem pode ser homogêneo. Partindo, porém, do preconceito de que o é, levamos a procurá-lo por toda parte, ampliando e generalizando particularidades locais.
Quando uma sensibilidade mais viva e uma inteligência mais penetrante conseguem fixar os tipos de um determinado ponto do país logo gritamos, na nossa ânsia de unidade: “Está quente! A brasilidade anda por aqui! é o ‘decoroçoamento’ do jeca ou a energia taciturna e humilde dos moleques da bagaceira”.
Isso, até nova ordem, até que os gaúchos tenham o seu cantor, ou surja o romancista dos seringais. Aliás este já existe, e é dos maiores: o português Ferreira de Castro, o autor daquela imensa Selva. É mesmo de notar que um dos grandes romances sobre o Brasil (sobre o Brasil ou sobre a Amazônia?) seja obra de um estrangeiro. Ao fato acidental de ter nascido em Portugal o sr. Ferreira de Castro devemos não se ter o “espírito brasileiro” encarnado num seringueiro.
Essas súbitas explosões da nacionalidade em livros tão diversos, surgindo aqui e acolá, aparecendo e desaparecendo com a rapidez de fogos-fátuos, só nos podem honestamente levar a uma conclusão: a brasilidade totalitária é um mito, uma lenda, um tabu a que se apega a nossa vaidade. Não existe, nem poderia existir, ao menos no sentido em que o queremos tomar, de feitio moral especificamente brasileiro, igualando os homens do Rio Grande do Sul, e os diferenciando dos outros povos. Ou é o regionalista, ou não é nada.
Existem, felizmente, entre a nossa gente, grandes laços políticos e tradicionais, e mesmo muitos laços sentimentais e culturais mas não existe ainda uma formação essencialmente brasileira. Somos um todo, mas um todo heterogêneo, que só pode viver na medida de sua complexidade. Precisamos respeitá-la, em vez de querermos uniformizá-la. O sentimento brasileiro, se quiséssemos forçar a sua existência, seria coisa artificial e praticamente irrealizável: a média entre as diversas sensibilidades locais. Sobrepor esse monstro sintético, essa abstração, à realidade tangível e fecunda do regionalismo é mais do que um crime, porque é uma tolice.
Sem dúvida, os livros de José Lins do Rego, por exemplo, não são unicamente regionais. Se o fossem não teriam o alcance que têm. Muito mais forte do que a sua cor local é a sua humanidade; através dos problemas regionais, alcançam os grandes problemas humanos. Aliás a pedra de toque do livro de valor real é a sua universalidade. Afinal de contas, as barreiras entre as nacionalidades são obras mais de políticos do que da natureza. O homem é mais ou menos o mesmo em toda parte. Traduzidos para o russo, como o estão sendo, os romances de José Lins do Rego nada perderão de sua essência. A solidariedade humana é muito mais forte do que a nacional. Se os Corumbas não vivessem em Maceió e sim em Lille ou em Cardiff, a superfície da sua desgraça se modificaria, mas o fundo seria muito semelhante. E a sua história nos comoveria igualmente.
Deixemos de sentimentalismo e de convenções: um burguês e um proletário brasileiros têm respectivamente mais pontos de contato com um burguês e um proletário francês do que entre si.
Evidentemente, há coisas intraduzíveis: as peculiaridades locais, a ambiência, o bouquet da obra por assim dizer. “Os homens podem se tornar cosmopolitas, os fantasmas permanecem patriotas”, diz Chesterton na Nova Jerusalém.
Os fantasmas, isto é, aquilo que se sente melhor do que se exprime: um termo que tem maior significação por ter sido colhido na boca de um homem rude, cuja única escola foi a vida, a emoção vinda da terra, do clima, as superstições, os hábitos peculiares de cada povo, a sua reação diferente diante da dor. Tudo isso faz parte da obra mas não é a obra, cuja superioridade está justamente em poder resistir à supressão desses elementos importantes porém secundários.
Ora, isso tudo é eminentemente local. Varia de zona a zona. Num país como o nosso, não pode ser igual em todos os pontos. O clima moral coincide mais ou menos com o clima físico. O ambiente de um bom livro tem de ser regional, como tem de ser universal a sua essência.
Até Machado de Assis, para quem a natureza quase não existia, foi regional. Sem serem romances de costumes, seus livros têm uma atmosfera muito carioca. Se o Conselheiro Aires não morasse no Catete, só poderia morar em Laranjeiras ou em Botafogo; fora do Rio, não seria o mesmo homem; o grito do vassoureiro que reconhece com tanto prazer situa-o em seu meio verdadeiro; o leitor carioca compreende-o melhor do que qualquer outro.
Mas porque pintou o nosso ambiente, porque nasceu na capital do país vamos dizer que é mais brasileiro do que os atuais campeões nordestinos do romance?
Todos o são igualmente, e tanto mais quanto mais se diferenciam. Em São Bernardo há muitos termos cujo significação me escapou, e que para um conterrâneo da Graciliano Ramos talvez aumentem o sabor do livro.
De que serve querer fingir que não somos uma colcha de retalhos? Sejamo-lo francamente: quanto mais diversos os coloridos, mais interessante ela fica.
A uniformidade de cores do disco de Newton é devida ao movimento. Quando o intercâmbio entre as diversas colorações da nossa sensibilidade for bastante forte para mantê-las em constante vibração, então o milagre se dará, e poderemos falar em brasileirismo. Até lá, porém, só nos podemos regozijar das nossas diferenças, sem querer manter entre elas hierarquias e precedências artificiais. União não significa uniformidade; e será, ao contrário, tanto mais forte quanto mais respeitadas forem as diversidades.
O imperador Carlos V tinha a mania inocente de colecionar relógios e o desejo ainda mais inocente de manter em completa sincronização esses maquinismos delicados. Mas nunca o conseguiu. Afinal, um belo dia, resolveu pará-los todos, para assim tê-los em completa igualdade, exclamando: “Decididamente, o acordo absoluto só é possível na imobilidade!!”
Não é o acordo da imobilidade que desejamos, e sim o do movimento; só o conseguiremos animando e prezando as nossas diversidades.
Até mesmo para a riqueza da língua, é um bem esse caráter regional dos livros, trazendo cada um o seu contingente de expressões. No prefácio do Negro Brasileiro (livro interessantíssimo, de que não ouso fazer a crítica por ser muito técnico, mas onde aprendi muito e que li com enorme prazer) lamenta Arthur Ramos que não haja ainda entre nós um só livro negro. E o lamenta com razão. Realmente, seria a ocasião de empregar uma frase feita e muito barateada, dizendo que “viria preencher uma lacuna”. Uma grande parte da nossa gente – uma parte que sofreu muito e por isso viveu muito – teria assim fixado o seu drama obscuro. O drama da injustiça social em toda a sua crueldade. E seria um romance nacional, no sentido de não precisar ser circunscrito ao determinismo geográfico, mas poder se passar em qualquer ponto do país.
Apesar disso, porém, e apesar da color-line ser entre nós um impreciso e caprichoso rabisco, não creio que a nossa vaidade de pseudo-arianos o reclamasse como uma expressão do espírito brasileiro…
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Do livro Escritos da Maturidade (Rio, Graphia, 2005, 2ª ed.)
SERVA ORGULHOSA
(Publicado originalmente no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo. São Paulo, nº 31, p. 1, ano I, 18/5/1957.)
Dois professores universitários americanos, um de inglês outro de literatura, ambos com vários trabalhos de críticas, F. J. Hoffman e H. T. Moore, lembraram-se, há uns poucos anos, de reunir os melhores estudos sobre D. H. Lawrence, assinados, entre outros, por Sigrid Undset,
Aldous Huxley, T. S. Eliot e Edmund Wilson. Os trechos escolhidos, embora bastante divergentes em suas apreciações – para Sigrid Undset “a língua inglesa se funde no seu espírito inflamado e sai dessa forja rebrilhante, com novos e admiráveis valores”, enquanto para T. S. Eliot “ele escreve em regra muito mal” – reconhecem ao menos todos a importância do romancista tão discutido em seu tempo. Mas os julgamentos citados pelos compiladores na Introdução é que espantam pela diversidade, indo da completa negação ao culto mais fervoroso: “(…) ou Mr. Lawrence está louco ou o estou eu”, escrevia um colaborador de New Statesman, Raymond Mortimer, e, no ano seguinte, H. J. Seligmann, num livro todo dedicado ao autor de Sons and Lovers via na sua obra “a peregrinação da alma humana no mundo moderno”.
Sem dúvida, opiniões opostas, qualquer assunto, qualquer tema as suscita, não havendo motivo para que da regra fujam os literários. Pareceu-me contudo impressionante esse conjunto das contradições provocadas por um mesmo homem; impressionante menos pelo embaraço porventura causado a quem se queira informar sobre Lawrence do que pela precariedade que revelam nas apreciações críticas. E não discordam tão-somente os julgadores uns dos outros, mas de si mesmo, como é o caso de T. S. Eliot que, depois de tanto atacado acaba concedendo que “seus trabalhos devem ser examinados de um novo ângulo”.
É certo que, por sua posição de rebelado contra a moral corrente, D. H. Lawrence está entre os escritores modernos que mais provocam disputas e contradições. Mas, em menores proporções, o fato se repete com quase toda a gente, o que deveria induzir a crítica a uma atitude prudente e modesta. E não é esta que a vemos de ordinário assumir, sobretudo depois que os modernos estudos, realmente de maior alcance, lhe permitam reclamar foros de ciência. No seu ensaio intitulado The Age of Criticism, o americano Randall Jarrell conta dois episódios que merecem ser transcritos:
“Um romancista, amigo meu, foi uma vez a um Congresso de Escritores;
todos os outros membros eram críticos, e cada congressista deveria
fazer uma conferência pública. Meu amigo assistiu a todas as dos críticos,
e nenhum crítico a sua, o que de modo algum o surpreendeu, certo
como estava de não ser tão entendido em literatura quanto os demais.
Recentemente fui a uma reunião na qual alguns críticos discutiram as
opiniões de Wordsworth sobre arte poética. E pareceu-me digna de nota
a maneira consciente ou inconsciente protetora com que tratavam – estou
quase a dizer o pobre Wordsworth. Entendiam o que, na sua confusão
de leigo, ele tentara exprimir, e porque achavam dever admitir que
fora um grande poeta, encontravam nas suas observações (…) um estupendo
interesse documentário. Mas os críticos não podem esquecer a
diferença que os separa de Wordsworth e de meu amigo; eles sabem
como se fazem poemas e romances, enquanto os outros os fazem sem
saber como. É como se um porco quisesse tomar parte num concurso
sobre bacon; seria enxotado com impaciência: “Passa fora, porco! que
entendes tu de bacon?”
Exagerada como toda sátira, esta não deixa de se conter uma boa parte de verdade; as sábias análises, as interpretações engenhosas, a busca de intenções secretas podem muitas vezes deixar aturdidos os autores; será anedota o caso narrado no Suplemento Literário do Times, de uma romancista declarando nada haver compreendido da conferência de Percy Lubbock a seu respeito? E note-se que, segundo a notícia, era altamente elogiosa a palestra.
Não há como negar – e nem haveria motivo para fazê-lo – que os estudos lingüísticos e estatísticos atualmente em moda podem revelar tendências e preocupações das quais não se dá conta quem escreve; e que a obra sofre legitimamente interpretações diversas da do autor, já que da colaboração entre este e o leitor e com maior razão o crítico, o leitor por excelência – decorre o seu verdadeiro sentido. Mas se o criador não é o único intérprete autorizado de uma obra, muito menos o será cada crítico, que embora procure escrupulosamente a objetividade, raro se consegue livrar dos elementos subjetivos. Entrará sempre um critério pessoal, portanto arbitrário, na própria escolha que faz do material fornecido pelo texto de que se ocupa.
Nesse sentido, é criadora a crítica, como o é qualquer atividade intelectual. Ainda para redigir um relatório, a seleção dos dados e sua ordenação, a preferência dada a determinadas palavras em detrimento de outras, o desenvolvimento da exposição revelam, rudimentarmente, as virtualidades criadoras existentes em todos aqueles que são capazes de pensar. Tudo pode ser exprimido de mais de uma maneira resultante pois a prevalecente de um ato criador – criador e crítico a um tempo, já que a seleção significa também uma autocrítica, sendo criadora quando visa a parte essencial, a estrutura, e crítica quando cogita de melhorar, de aperfeiçoar esta. Diferenças, sutis, quase imperceptíveis, talvez melhor explicáveis por exemplo, o pesquisador que aproveita tais ou quais informações, desprezando outras, por julgá-las menos interessantes para a construção de seu trabalho, exerce uma função criadora, e o escritor que substitui por outra de valor equivalente, porém menos plástica ou sonora, uma palavra de seu texto, atuará nesse momento como crítico. T. S. Eliot, com sua dupla autoridade de poeta e crítico, chega mesmo a asseverar que a mais alta forma da crítica, é a que pratica o autor acurado ao corrigir seu manuscrito.
Se todavia por um instante se irmanam e confundem, como por vezes se interpenetram inteligência e sensibilidade, nem por isso, como gêneros literários, deixam de se separar nitidamente criação e crítica. E esta, apesar de exigir maior cultura, dons mais apurados de penetração, em muitos casos maior esforço, maior aplicação, não se pode comparar e muito menos igualar àquela. E talvez uma das subversões de nosso tempo seja a importância excessiva que vem adquirindo, esquecida de que, por sua própria natureza, é menos importante e até mesmo rigorosamente, parasitária. Espantou-me, e até certo ponto escandalizou-me ouvir de uma feita um dos maiores poetas brasileiros, João Cabral de Melo Neto, dizer que o que gostaria de ser era crítico, pareceu-me que desconhecia ou renegava a grandeza
suprema do dom criador, do qual tão belas e inequívocas manifestações tem dado. Será acaso superior a qualquer de seus poemas a mais profunda exegese deles feita?
Sem dúvida, o criador necessita do crítico para ser apreciado, explicado; em certas circunstâncias, creio que muito raras, pode inclusive tirar proveito de suas considerações, por elas se guiando para aperfeiçoar-se. Mas é ele quem lhe fornece o tema, o alimento, a razão de ser. Via de regra, a crítica não passa de epifenômeno, de superestrutura.
Por isso é que, por muito engenhosa, habilidosa e percuciente que seja nunca se há de olvidar de sua condição subsidiária, nunca se há de mostrar arrogante, usurpando um primeiro lugar que não lhe compete. Seu fim precípuo deve ser afinal, induzir os leitores a melhor equipados por suas explicações, conhecer diretamente as obras de que trata. Impressionista ou científica, falhará à sua missão se não conseguir facilitar a compreensão, a aproximação dos criadores, ajudando a descobrir o que, numa leitura menos atenta, pode permanecer ignorado. Ora, se assumir ares superiores, se sobretudo resvalar para o pedantismo, poderá, ao contrário, dificultar o contato entre o escritor e o público, o que redunda numa quase negação de si mesma.
Não sendo autotélica, mas, ao contrário, tendo fora de si, na explanação e na interpretação de alheias criações, o seu fim, daquelas se há de fazer, sem com isso se sentir diminuída, vassala e tributária. O nosso grande Mário de Andrade, poeta que, dirigindo uma revolução literária, exerceu na sua plenitude e na sua maior nobreza função de crítico, chamou “A escrava que não é Isaura” um ensaio sobre a poesia modernista. Talvez em certas fases se deixe escravizar a poesia, mas, por sua essência, ela é livre, altaneira e senhora. A verdadeira escrava, que morrerá se libertada, é a crítica.
Talvez a amesquinhe a observação de Paul Valéry – “a operação crítica fundamental é a determinação do leitor” – mas entre esta e o autor há de se colocar, compreensiva e solícita, solicitude e compreensão que exigem, sem dúvida, qualidades intelectuais de primeira plana.