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Além de poeta, Ruy Meira (Belém, 1921) é artista plástico, ceramista, paisagista e engenheiro civil. Estudou no Ginásio Paes de Carvalho e engenharia na Escola de Engenharia do Pará, integrando a turma de 1947. Desde cedo mostrou vocação para as letras, especialmente poesia, e artes plásticas (iniciando-se com pintura figurativa, evoluindo para a pintura abstrata, tendo participado de inúmeros salões regionais e nacionais, com excelente crítica especializada e prêmios diversos). O mesmo ocorre com a cerâmica, que apresenta linhas inspiradas no artesanato dos povos pré-cabralinos da sua região, como assinalou o crítico Frederico Moraes na apresentação do Salão de Belo Horizonte. Tem comparecido aos salões de diversas capitais brasileiras (Rio, São Paulo, Curitiba, Salvador), sempre distinguido e premiado.
Publicou esparsamente na imprensa e tem um livro de poesia, profundamente ligado à natureza.
Livro: Frágil Canto. Poesia. Belém, Grafisa, 1978.
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Do livro Poesia do Grão-Pará (Rio, Graphia, 2001, seleção e notas de Olga Savary).
POEMA
Eu sou um mar sem água
soturno mar sem água
cercado do silêncio das sombras
que adormecem em meus braços.
Eu sou um mar sem luar
sem estrelas e sem céu
para cobrir meu sono derradeiro.
Sou um mar sem praia,
sem ondas e sem vida
só lembrança talvez.
Sou apenas a paisagem surrealista
infinitamente profunda e submersa
de antepassadas naus
Mergulhadas na visão trágica do tempo
Um lençol branco de sal cobre-me o corpo
Sou a primeira lágrima do mar,
a que nasceu sozinha:
a pequena gota
que morreu tragicamente
aos primeiros beijos do sol.
Sou a lágrima que matou a sede das primeiras areias,
nos primeiros séculos da eternidade.
Sou a lágrima sem tempo e sem forma
que o céu chorou pela última vez.
A última evaporação
que se desgarrou da terra para evaporar no céu
eu sou um mar sofrido,
sofrendo sua própria lembrança
sem lágrima alguma para derramar.
POEMA MILEQUATRO
(Fragmento)
Rodeado de árvores e fazendo parte delas,
me levantei da terra,
caminhei levando comigo
uma floresta inteira
que já começava a florescer.
Os homens não acreditavam
ficavam parados, atônitos,
diante da floresta que caminhava,
que florescia e frutificava.
E eu lhes expliquei tudo,
momento por momento.
Mas eles não entendiam.
A minha voz era a voz das árvores.
Como o podiam entender
se eu lhes falava com a voz das árvores?
Com o idioma das árvores?
com o olhar de árvores e o sentir também,
onde as lágrimas que voltavam à terra
eram seiva viva que logo desapareciam.
onde as minhas árvores desapareceram,
um sol ardente as substituiu.
E o deserto me falou do seu desespero
de sua pele castigada diariamente pelo sol.
Eu lhe ofereci então as minhas lágrimas
que vagarosamente foram se infiltrando,
até se esgotar todo o meu pranto
queimado pelo sol ardente até a combustão.
OPUS CENTO E VINTE E TRÊS
De rosas e lírios
fiz meu pranto
que o orvalho da noite
fez cair sobre o teu manto
ainda morno e queimado de sol.
Colorida chuva dos meus sonhos
de rosas e lírios perfumada.
E as mãos que enrijeceram?
Não falaram de leves gestos
perdidos no infinito?
Como guardar a angústia deste grito
num feixe de silêncio amordaçado?
Nele
somente nele,
onde não sai nem entra o desespero.
Morre comigo.
Quero habitar no interior
de um grão de trigo,
onde não há
nem som, nem ausência,
apenas equilíbrio,
num permanente cantochão
de estranhas vozes.
De morada em morada
serei então eternidade.