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Vital Lima nasceu em 1955 em Belém do Pará onde, em 1974, foi uma das revelações do 1.º Festival de Música e Poesia Universitária. É cantor, compositor, letrista e poeta, tendo sua obra divulgada através dos discos Pastores da Noite (1978), Cheganças (1980), Interior (1986 – com Nilson Chaves), Vital (1990) e Chão do Caminho (1997). Suas canções também foram gravadas por outros intérpretes da MPB, como Elizeth Cardoso, Marlene, Alaíde Costa, Simone, Marisa Gatta Mansa, Emílio Santiago, Zé Renato e Fafá de Belém, entre outros. Também faz parte de sua discografia o CD Waldemar (1994), concebido e executado com Nilson Chaves, revisando a obra do consagrado compositor amazônico Waldemar Henrique, considerado um dos dez melhores lançamentos do ano pela crítica do jornal O Globo do Rio de Janeiro.
Os poemas aqui apresentados são inéditos.
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Do livro Poesia do Grão-Pará (Rio, Graphia, 2001, seleção e notas de Olga Savary).
CICLOS E CICLONES
I
Foi de novo um ciclo, um processo,
uma sucessão de acontecimentos,
como um céu que se nublasse aos poucos e desabasse
e despertasse o sentimento primitivo
alimentando o pânico,
transformando as palavras em lâminas afiadas
a destruir barragens
provocando inundações
e a correria dos cavalos assustados.
II
Se as palavras tentam dizer as coisas
e só dizem o arremate
e o ventre da construção fica de fora,
por que não têm a frieza do gelo
e, às vezes, queimam como ferro em brasa
quebrando o cerco para o espaço aberto
aos nossos dragões condenados?
Os dragões não cabem no circo
mas são amigos do dono
feitos da mesma verdade…
a mesma que arruma as estrelas
ensina o prazer aos tiranos
e une metades.
Os dragões não cabem no circo
mas saem da cartola do dono
com esse poder das aranhas
de irem cuspindo novelos
prendendo a platéia ao espanto
de não imaginá-los, mas vê-los
verdes e esfumaçando
derrubando esteio e lona
sem que se lhes ponha arreios.
III
Quando a paixão se nos aparece
como um caminho viável para a verdade
há que se levar em conta seus dragões indomados
e a extravagância das palavras pelo meio
– porque se atingem corredores do afetivo
disso não decorre que possam dizê-lo
e o espetáculo, normalmente,
termina desse jeito:
lanhos enormes na pele e panos esgarçados,
cérebros pisoteados
e um nada de picadeiro.
Mas assim é a vida!
Não há como mover as peças com absoluta segurança
nem como levantar hipóteses sem margem de erro.
Assim como é difícil se isolar para evitar desgaste
ou se estar junto e evitar conflito.
Daí se aproveitar todos os resíduos,
cada farelo de nossas experiências
porque nelas se confunde nossa história.
Mesmo que o sol desapareça
e o céu desabe
e as palavras virem lascas de madeira sob as unhas
cada riso e lágrima e grito e mordida
cabem no dedal de quem costura o tempo
e são imprescindíveis.
Em tudo há uma indicação,
uma sinalização do rasgo da lona,
uma gargalhada do dono do circo.
Tudo é necessário para que tudo aconteça
até pra que se tente comandar os rumos,
dinamitar obstáculos
e escrever o destino.
PEDRAS DE LIOZ
Entre a paisagem e a memória
há um liame, uma cumplicidade
que o meu coração suporta, apesar de tudo.
Cada mangueira, cada pedaço de rua,
cada pedra de lioz do calçamento,
cada pancada de chuva e canção desavisada
não são apenas a mangueira e o pedaço de rua
e a pedra de lioz do calçamento
e a pancada de chuva e a canção desavisada
porque têm em si o que se nos apresenta,
o que não se apresenta
e o ser da ausência.
O fenômeno, vemo-lo pelos sentidos,
o que não vemos, transcende
mas é o ser da ausência o que intriga
já que ali não está o que é.
Tua ausência é o que me dói na paisagem da cidade,
nas pedras de lioz que tenho ajudado a gastar.
Grudada na memória feito parasita
tua ausência me habita
e aos lugares que só eu sei.