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Sobre vida e obra de José Carlos Oliveira, citando o livro Diário da Patetocracia: Crônicas Brasileiras – 1968. (Rio, Graphia, 1995). In: Jornal do Brasil, Caderno B, 11/5/1997, p. 4.
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CRONISTA DE UM TEMPO CONTRADITÓRIO
André Luiz Barros
Livro e tese revivem a vida e a obra de um genial intérprete da vida carioca
Cronista de um tempo contraditório. José Carlos Oliveira, ou Carlinhos Oliveira (1934-1986), deixou como herança suas próprias contradições, iluminações, raivas, lirismos e fragilidades. Mesmo na hora da morte, compartilhou com os leitores ideias gerais e misérias pessoais: “Esse pâncreas – o meu – está condenado à paralisação. Não posso prever o dia em que isso ocorrerá. Mas, nesse dia, estarei morto ( .. ). Essa perspectiva não me amedronta. Só não posso aceitar a ideia de vir a morrer sem ser em pleno combate”. Carlinhos fez dessa via-crucis própria e da metralhadora de ideias (muitas vezes díspares, outras, incisivas) a razão de tornar-se um dos mais famosos cronistas do país nos anos 60 e 70, quando escrevia no JORNAL DO BRASIL.
O rapaz baixo e franzino (“com o coração de Gauguin, o fugitivo, o liberado, o inocente, o doido”, automistificava-se), chegado ao Rio com 18 anos, vindo de Vitória (ES), com uma pesada culpa familiar nas costas, está sendo revivido graças a uma tese: José Carlos Oliveira – A sedução do duplo, da jornalista Sheila Kaplan, e o livro Cronista, boêmio, bandalho – Carlinhos de Oliveira e sua geração, biografia do jornalista Jason Tércio, a ser publicada por editora carioca. Além disso, em Vitória, uma sobrinha de Carlinhos, Regina Egito, planeja criar uma fundação onde, entre outras coisas, ficará o arquivo do cronista, que estreou em 1957 no Suplemento Dominical do JB. Carlinhos ficou no Caderno B até 1983. “O cronista Carlinhos era muito mais forte do que o José Carlos. Como pessoa, ele era fragilíssimo, mas em seus textos, atacava personagens poderosas da cidade e até a ditadura”, explica Sheila. Mas Carlinhos, que saiu de casa com a culpa familiar nas costas, deixando a mãe viúva cuidando de seis filhas e nunca mais a veria, logo tornou-se personagem pitoresco da boêmia carioca. O abuso do álcool só aumentou suas misérias próprias (Regina Egito cedeu ao JB uma carta-oração de extremo desespero escrita por Carlinhos perto da morte).
A repercussão das crônicas aumentava na proporção do desregramento pessoal do cronista. O dramaturgo e imortal Dias Gomes, que chegou a colocar Carlinhos como protagonista do próprio personagem, ao recriar o clima boêmio de Ipanema na novela Assim na terra como no céu (de 1970), lembra de uma aprontaçâo etílica no casamento de Flávio Rangel, em São Paulo. “Fui com o Paulo Francis e o Carlinhos bebeu tanto, mas tanto, que tivemos de deixá-lo no apartamento do Flávio, em plena lua-de-mel. O noivo saiu do quarto possesso com alguém batendo na porta. Era o Carlinhos”, contou Dias. Na verdade, uma fase hippie, o uso de drogas “para experimentar” e a intensa boemia alcoólica faziam de Carlinhos um cronista sem perfil ideológico definido, o que o tornava mais pitoresco e menos militante, apesar de suas muitas críticas denunciando os abusos da ditadura. Quando a polícia invadiu o apartamento de Ferreira Gullar e Tereza Aragão, em 1965, por exemplo, ele escreveu uma crônica vigorosa contra a arbitrariedade.
Mas a montanha russa emocional do cronista levou-o, 16 anos depois (1981), a acusar o Partido Comunista de ser contra as ideias de seu romance recém-lançado Um novo animal na floresta, só por causa de uma crítica contrária de um militante comunista. Numa entrevista na época, um Carlinhos já diagnosticado de pancreatite crônica, extremamente fragilizado, disse que o autor da reportagem não era o repórter que assinara, mas sim Ferreira Gullar. O poeta e crítico de arte escreveu então uma carta apontando a mentira de Carlinhos. “Ele era incomensurável em suas atitudes. Não se pode acusá-lo de mau caratismo. Ele não conhecia os limites da amizade e lealdade. Brigou comigo e com seu próprio médico, o grande neurologista Sérgio Carneiro, no fim da vida. Era um bicho que vivia na toca, e a toca era ele próprio”, define o amigo César Thedim, arquiteto e industrial da área petroquímica. Figura influente da sociedade carioca, habitué do Antonio’s e namorado de Leila Diniz, César lembra que Carlinhos emprestava seu apartamento próximo ao bar para um casal de amantes. Certo dia, acompanhou a amiga até o apartamento e, na portaria do prédio, não se conteve e a agarrou. No teatro Casa Grande, numa homenagem à cronista Eneida, que estava com câncer, Carlinhos gritou referindo-se a alguém da plateia: “Cuidado que ele pode levar o dinheiro”. A atriz Odete Lara levantou-se, perguntou: “Você é o Carlinhos Oliveira?”, e sapecou-lhe um tapa na cara.
Em cena de ciúme numa festa, Carlinhos jogou pela janela um anel de brilhante de U$S 20 mil. Naquela noite, muita gente bem vestida desceu para mexer nos canteiros da avenida Delfim Moreira, mas nada foi encontrado. Na história mais famosa, em assalto a mão armada ao Antonio ‘s, entre os reféns no banheiro só se ouviu a voz de Carlinhos: “Seu ladrão, leva os penduras!”, referindo-se aos papéis com nome dos devedores contumazes.
Todo o folclore criado sobre ele não tirava a força nem a repercussão dos textos de Carlinhos. Já em 1953, na Manchete, ele falava em meninos de rua: ”A cidade se transformou em vitrine de misérias ( … ) Principalmente crianças. Em cada bar encontramos cinco, seis delas vendendo pentes, marmeladas, bonequinhas, pedindo dinheiro e pregando em nosso sanduíche os mais dolorosos olhos. Que direis delas, as crianças? (…). Estamos criando uma geração de revoltados sociais”, escreveu na crônica “Salvem-se as crianças”. Anos depois, quando já era famoso, podia fazer provocação em plena Semana Santa, como na crônica “A padroeira dos ateus”, sobre Santa Teresa de Lisieux, definida como “protetora dos existencialistas e marxistas”, como ele se rotulava. Ou em pleno 1968, escrever: “Todo dia um pateta qualquer enfia sua pata numa peça de teatro e corta as frases que lhe parecem atentatórias à moral, aos bons costumes e à democracia (…). A patetocracia não dorme em serviço”, como se lê no Diário da Patetocracia – Crônicas brasileiras 1968, compilação da editora Graphia. Ou então, no mesmo ano: “Devemos reconhecer que as autoridades responsáveis tudo fazem para se eximir de culpa toda vez que os jornais denunciam espancamentos e torturas”.
Mas também, contraditoriamente, em plena ditadura, podia aceitar, com amigos como Manolo, dono do Antonio’s, um passeio num submarino da Marinha. E depois, escrever crônica elogiosa sobre o avanço da instituição, em pleno governo Médici, e as acusações de tortura no Cenimar. Fazia crônicas em forma de entrevista a si mesmo (“Ele era riponga”, diz César Thedim. “Não me lembro bem, mas acho que era reacionário”, resvala Dias Gomes). Carlinhos elogiou, mas não se aproximou, do pessoal do tropicalismo e brigou com o do Pasquim. Da mesma linhagem de Rubem Braga, outro capixaba, Antônio Maria e Sérgio Porto, de uns se diferenciava pela acidez, de outros por subestimar o excesso de trabalho. “Tinha a elegância de Graciliano Ramos e a picardia de Lima Barreto”, acha Jason Tércio.
Entre os conflitos íntimos de Carlinhos, um dos mais importantes era a confusão entre os limites do escritor e o cronista. Chegou a ser rotulado, maldosamente, de “a maior promessa fracassada da literatura brasileira”. “Eu sou como o João do Rio e só vão reconhecer a importância depois de minha morte”, escreveu um dia, pressionado com cobranças para escrever um romance de peso. Em A sedução do duplo, Sheila Kaplan mostra como Carlinhos Oliveira viveu intensamente o conflito entre um modelo de grande escritor, denso e sofisticado, que estava desaparecendo, e o formato das crônicas simples e cotidianas, que estavam sendo revalorizadas. “Hoje podemos ver que suas crônicas eram sua obra. Mas, na época, ele se dividia e se cobrava muito”, diz Sheila. O conflito interno fica claro numa simples entrevista com a escritora Clarice Lispector, para a Manchete (leia ao lado).
Em romances como Terror e êxtase, seu maior sucesso, lotado de flagrantes de violência na classe média alta carioca, transformado em filme pelo diretor Antônio Calmon, Carlinhos faz uma literatura de massa que desagrada à crítica. Mas, para muitos, foram as entrevistas de Carlinhos que o tornaram símbolo de escritor irrealizado, “como se essa fosse a pátria dos escritores realizados”, segundo o editor Bernardo Mendonça. Em Um novo animal na floresta há o personagem Carlinhos Oliveira, que ele jurava não ser ele próprio, mas que no fundo era. “Essa criação de um personagem cronista foi construída propositalmente”, diz a sobrinha Regina Egito. “Quando uma inquietude é permanente, torna-se uma forma bem sucedida de seduzir o leitor. Com isso, Carlinhos manteve seu emprego e sua fama ao longo de tantos anos”, acredita Sheila.
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A dor de uma confissão
Poucos meses antes de morrer, José Carlos Oliveira escreveu esta dilacerante e sofrida carta confissão para seus parentes, nunca publicada antes:
“O meu pecado mortal é ter abandonado e ferido e rejeitado a minha mãe. Não sei se ela ainda vive. Os motivos que apresentei publicamente para justificar esse pecado mortal são verdadeiros e constituem outros tantos pecados mortais: ódio, rancor, vingança, soberba, inveja de meu irmão Antônio, orgulho;
A lavadeira que me deu à luz e me criou e me sustentou e me educou e me encaminhou à religião católica e tudo fez por mim sem nada pedir em troca, a quem devolvi desprezo, abandono, calúnia, difamação, opróbio; a quem não ouso pedir perdão, que sem dúvida me espera, de preferência viva, ou então morta em sua sepultura.
O meu pecado mortal se desdobra ao infinito pelo traiçoeiro ataque que fiz a essas mães publicando um livro odioso intitulado O pavão desiludido; nesse mesmo livro caluniei e difamei meu pai, Pedro Pinto, atribuindo-lhe um crime infamante; Maria Tristão, a mãe, Pedro Pinto de Oliveira, o pai. Minhas seis irmãs. O menino Antônio, filho do segundo casamento de minha mãe, casamento esse que me roeu de vergonha indevida – e esse menino que me encheu de ódio assassino, antes mesmo de nascer; também abandonei um velho alemão no meio da rua e contemplei impassível a destruição física de Cláudia, a linda moça que era então minha mulher; e outros pecados mortais, igualmente imperdoáveis, relatados fria e traiçoeiramente no livro Um novo animal na floresta, dos quais me orgulhava ainda há um minuto!
– para os quais igualmente não há perdão, a menos que a misericórdia de Deus e do Filho de Deus e do Espírito Santo e da Virgem Maria
– que essa misericórdia seja infinita a ponto de abranger e pacificar o inferno.
Eis então, Senhor Deus, quem é José Carlos de Oliveira.
Minha Mãe de Deus, eis então quem é esse por quem um dia derramaste lágrimas coloridas e imensamente consoladoras;
um bicho que não morre;
o melhor aluno do Dr. Diabo;
o tristemente célebre José Carlos de Oliveira, artista do rancor incomensurável; nos dois outros livros, Terror e êxtase e Domingo 22 – este recém-publicado – há uma purificação chamada transposição literária, constituindo atenuantes artísticas (mas não morais e religiosas). Quero então renegar, se for necessário, tudo o que escrevi até hoje.
Peço de joelhos a Nossa Senhora de Fátima que me restitua a decência por mim malbaratada; a Santa Teresa de Lisieux que me ensina o caminho da salvação; a Santo Antônio de Pádua que purifique a minha língua; a todos os santos e anjos que vençam em mim, por mim, todos os demônios que se apossaram de mim; a Jesus Cristo Nosso Senhor que não me deixe apodrecer nesta vida e na eternidade do inferno para além desta vida.
Eu que já não tenho direito à súplica, aqui estou suplicando; que já não tenho direito ao perdão; aqui estou suplicando
MISERICÓRDIA
sem nenhuma esperança de ser atendido mas cheio de fé.
28 de janeiro de 1985
Eu pecador, José Carlos de Oliveira, filho de Pedro Pinto de Oliveira e de Maria Tristão de Oliveira”. (Carlinhos costumava brigar com quem colocava o “de” em José Carlos Oliveira, mas na carta o colocou em sua assinatura).
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Carlinhos, um menino triste
O drama encenado ao longo da vida de Carlinhos Oliveira tinha origem na infância. Seu pai, oficial músico da polícia, suicidou-se com um tiro na cabeça quando ele tinha cerca de 14 anos. A mãe se desdobrou para criar as seis filhas e o quase caçula (só havia uma mais nova). Sua educação foi muito repressora e o medo da pobreza era enorme. A mãe casou-se novamente e teve um outro filho homem. O menino Carlinhos morria por dentro de ciúmes. Ao 18 anos, sem dinheiro ou perspectivas, José Carlos Oliveira partiu para o Rio, sem o consentimento da família. A mãe sonhava em ter o único filho homem sustentando-a. Nunca mais ele se livrará do sentimento de culpa e nunca mais (por conta de uma série de desencontros e muita mágoa) tornará a ver a mãe. “Ele tentou resolver esses conflitos em livros como o autobiográfico O pavão desiludido, em que a certa altura, escreve: ‘Vomitei minha mãe”‘, acredita Regina Egito. O pouquíssimo conhecido livro póstumo Bravos companheiros e fantasmas (Universidade Federal do Espírito Santo) é o único de contos, uma inovação que apontava uma mudança de rumos. Mas já isolado em Vitória, muito doente, Carlinhos esperava apenas o pâncreas parar de funcionar. Morreu aos 51 anos com aparência de 80.
Ao longo de sua “segunda vida”, Carlinhos teve quatro amores, sendo a primeira a jornalista Maria Inês Duque Estrada, por quem cultivou paixão idealizada e adolescente. Ela terminou o namoro, frustrando-o. “Estou maduro; sinto que em mim existe um núcleo, uma região cristalizada, um nó, e esse nó é o meu espírito, a minha alma, a minha personalidade, o meu crispado calar-me, o meu ser (…). O futuro se me apresenta menos atormentado. O passado já não me parece atormentado, ou melhor, já não sinto vertigem ao contemplá-lo. Você saberá compreender a parte que lhe toca nessa mudança”, escreveu a ela em 1959.
Mais tarde, um romance inconsequente o faria indispor-se com parte da intelectualidade e da sociedade. “Carlinhos acabava afastando as mulheres. Vi-o entusiasmar-se por uma menina de 15 anos que tinha perdido o pai e, quando a moça lhe mostrou um anel presenteado pelo namorado dela, ele o jogou no chão enciumado”, conta César Thedim. Mais tarde, Carlinhos conheceu Cotinha, ou Maria Duha, futura jornalista. A paixão é meio conturbada, com brigas em público, mas os dois se amam. Cotinha, anos mais tarde, atuará como enfermeira do doente Carlinhos, já não mais alcoólatra, vivendo de chás. Por fim, Cláudia Gonçalves, filha de um executivo do ramo de bebidas, assiste à decadência física do cronista. “Tínhamos vontade de proteger aquela figura frágil, como se protege um paraplégico muito, muito inteligente”, analisa Thedim. “Ele se criou em uma casa cercado por seis irmãs e a mãe viúva. Mais tarde, conseguia manipular e ser tratado como um irmãozinho mais novo por muitas amigas”, conta Jason Tércio.
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Alguns segredos feitos de papel
Numa noite no Antonio’s, Clarice Lispector fez uma entrevista com Carlinhos Oliveira para a revista Manchete trocando bilhetes escritos em guardanapos de papel:
Carlinhos de Oliveira – Você prefere ser uma grande escritora. Mas eu renunciei há muito tempo a essa vaidade. Quero comer, beber, fazer amor e morrer. Não me considero responsável pela literatura.
Clarice Lispector – Nem eu, meu caro. E estou vendo a hora em que começaremos, dentro de toda a amizade, a brigar. Também posso lhe dizer que se viver é beber no Antonio’s, isso é pouco para mim. Quero mais porque a minha sede é maior que a sua.
CO – Evidentemente.
CL – Eu gosto muito de você, Carlinhos.
CO – Mas aqui não estávamos falando de amizade, e sim mostrando que uma escritora como Clarice Lispector, em vez de comer e beber comigo, tem que pensar em entrevistas para poder sobreviver. É por isso que eu digo: devemos jogar uma bomba atômica na Academia Brasileira de Letras.
CL – Carlinhos, vamos terminar esta minha tentativa de sobrevivência financeira com alguma coisa que não nos humilhe? Faça uma chave de ouro.
CO – Tudo nos humilha. Ninguém acredita em nós. Tudo está certo para eles, mas não nos pedem senão idiotices. Esta é uma chave de ouro. O resto é literatura.
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SOBRE o livro O Cheiro de Coisa Viva, de Dyonélio Machado (Rio, Graphia, 1995. Introdução, seleção e notasde Maria Zenilda Grawunder). In: Jornal do Brasil, caderno B, 9/08/1995, p. 1.
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LUZES SOBRE O ARREDIO DYONELIO
André Luiz Barros
O lançamento de “O cheiro de coisa viva” recupera o ativista político que renovou o romance urbano brasileiro há 60 anos
Ativista político em pleno Estado Novo, primeiro tradutor de psicanálise no Brasil, psiquiatra, romancista, deputado e diretor de jornais, o gaúcho Dyonelio Machado (1895-1985) faz parte do clube dos injustiçados. Autor de romances marcantes como Os ratos (prêmio Machado de Assis) e O louco do Cati, além de livros singulares de psiquiatria, como Uma definição biológica do crime, Dyonelio só se tornou realmente conhecido no Brasil na década de 70, após 43 anos de atividade literária e psiquiátrica. Agora, nos 100 anos de seu nascimento e 10 de morte, com o lançamento, na 7ª Bienal do Livro (que abre dia 17), de O cheiro de coisa viva (Graphia) e a reedição de Um pobre homem (Ática) – seu primeiro livro, de 1927 -, Dyonelio Machado volta a ser reconhecido como o precursor do romance urbano, da crítica social na literatura e até como um dos introdutores da psicanálise no Brasil. “Ele é autor de um livro extraordinário, considerado revolucionário em seu estilo: Os ratos. Até hoje, não teve uma divulgação à altura”, defende o escritor e colunista do JB Luis Fernando Verissimo, filho do gaúcho Érico Verissimo, que incentivou o então médico a escrever a pequena obra-prima. “Quando li Os ratos, fiquei muito impressionado pelo realismo de sua linguagem”, completa outra referência da literatura brasileira, Antônio Callado.
Nascido na cidade gaúcha de Quaraí, fronteira com o Uruguai, Dyonelio teve uma infância recheada de histórias sobre a Revolução Federalista e a Guerra do Paraguai. Nos arredores de sua casa, havia uma prisão a céu aberto, no arroio do Cati, dirigida pelo violento general João Francisco Pereira, a “hiena do Cati”. Daí o romance O louco do Cati.
Em Porto Alegre, dirigiu os jornais O cidadã” e A informação e se formou em psiquiatria. “Ele traduziu o livro de divulgação da psicanálise, do italiano Eduardo Weiss, nos anos 30”, lembra o escritor Ciro Martins, 87 anos, amigo de Dyonelio desde a infância. Em 1935, lançou Os ratos, o drama de um homem de classe média baixa, que durante 24 horas tenta arranjar dinheiro – para saldar uma dívida com o leiteiro. Na época, Dyonelio não conhecia o Ulysses, de James Joyce, que também se passa durante apenas um dia na vida do personagem.
Após um período como militante de esquerda, foi preso em 1935, como membro da Aliança Libertadora Nacional, de Luís Carlos Prestes. Passou dois anos e meio na prisão do Estado Novo e ali conheceu o escritor Graciliano Ramos. Em entrevista concedida na cela, afirmou: “A justiça é para a sociedade o que a medicina é para o indivíduo. Imagine-se o que seria, na esfera individual, uma medicina tardia, chegando fora de tempo, fora de toda oportunidade”.
Ao sair da prisão, em 1937, o debilitado Dyonelio ditou para sua mulher, Adalgiza Martins, o romance O louco do Cati, saga de um personagem sem rosto, sem nome e sem personalidade definida. De cama e impossibilitado de mexer sequer com as mãos, ele teve um colapso periférico. “Ouvi o grito da minha mulher, que era igual ao grito das mulheres cujos maridos estavam morrendo, e eu como médico sabia disso”, descreveu. O livro foi a forma de manter-se vivo: “Eu reagi contra a morte”, lembraria em depoimento nos anos 80.
O livro O cheiro de coisa viva inclui entrevistas e depoimentos, além das Memórias de um pobre homem e do romance inédito O estadista (leia trecho), encontrado nos arquivos do escritor pela pesquisadora e professora Maria Zenilda Grawunder, 50 anos, responsável pelos originais do autor. “Em parte, o ostracismo de Dyonelio foi auto-imposto. Ele era muito arredio com editoras e críticos”, revela Zenilda. A pesquisadora anuncia que encontrou outro romance inédito do escritor, Mulheres, provavelmente dos anos 70. “A obra conta o cotidiano de floristas humildes e tem o veio de crítica social de Dyonelio.”
O escritor gostava de acompanhar o mesmo personagem por vários romances. O Maneco Manivela de O louco do Cati, a figura do artista em meio à ditadura política ou de ideias, vira herói da trilogia de romances Desolação, Passos perdidos e Nuanças. Outra trilogia, formada por Deuses econômicos, Sol subterrâneo e Prodígio, se passa no Império Romano, em plena ascensão do Cristianismo, contrapondo a nova maneira de pensar a uma sociedade tradicional.
Hoje, só mesmo Os ratos e raramente O louco do Cati são encontrados em livrarias. No relançamento de Um pobre homem, o destaque é o conto “Narrativa de campanha: noite no acampamento”, cuja reedição numa revista, em 1942, causou nova detenção do escritor. Era um episódio da Guerra do Paraguai. “O azar é que havia um general descendente do personagem do livro”, lembra Ciro Martins. Resultado: “Eu fui tratado de todo jeito. Apátrida. Estava ‘denegrindo os heróis da pátria”‘, contaria o autor numa entrevista em 1979.