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Sobre o livro Obra Dispersa, de Manuel Antônio de Almeida (Rio, Graphia, 1991, introdução,seleção e notas de Bernardo de Mendonça), In: O Globo, Rio de Janeiro, 02/02/1992.
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A REALIDADE VISTA PELA ÓTICA DO RISO
Maurício Rocha
Corria o ano de 1857, e na Tipografia Nacional, sede da imprensa oficial do Império, um aprendiz de tipógrafo driblava o serviço e se distraía a ler e escrever poemas – fato natural aos 18 anos. Um dia queixaram-se ao chefe da repartição, não muito mais velho e também novato no serviço público. Mas não no ofício das letras: ele já havia publicado, sob o pseudônimo de “Um brasileiro”, um curioso romance que encalhou na gráfica – talvez por fugir ao gosto da época, mais receptivo à modelagem heróica do indigenismo de Alencar. Como chefe também fugia às regras. Benevolente, premiou a displicência do mau tipógrafo, Machado de Assis, apresentando-o a jornalistas de renome.
Esse “brasileiro”, carioca da Gamboa, era Manuel Antônio de Almeida, o “Maneco”. Ele não viveria para ver o reconhecimento de sua obra Memórias de um Sargento de Milícias – clássico antecipador do romance realista, salvo do esquecimento pelos amigos que a reeditaram após a morte do autor em um naufrágio, em 1861.130 anos após seu desaparecimento, a obra dispersa do escritor reaparece. Os textos reunidos são de crítica literária, crônica, artigos sobre ética jornalística, versos em clave romântica e até um drama lírico em estilo italiano. A introdução, de Bernardo de Mendonça, nos traz a visão de Almeida dos paradoxos de uma sociedade em formação, onde já se disfarçava o arcaísmo das estruturas com índices exteriores de modernidade. Um exemplo da atualidade provocadora do autor aparece logo em sua estréia no jornalismo, ainda como estudante de Medicina. Ele então investia contra os interesses dos políticos que pretendiam ocupar as terras indígenas, submetendo os índios à tutela e ao regime de trabalho servil.
Mário de Andrade identificou no estilo descritivo vigoroso e no sarcasmo com que “Maneco” torpedeava os costumes a expressão de um inconformismo profundo. Como romancista, distorceu a realidade pela ótica do riso, retratando tipos que já prenunciavam a índole malandra e astuciosa que daria perfil ao Brasil futuro. Seus textos jornalísticos trazem o abolicionista e defensor da livre imprensa, que criticava com lucidez e paternalismo o clientelismo político e o formalismo vazio e vaidoso das elites letradas.