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SOBRE o livro A Arte de Viver e Outras Artes, de Aníbal Machado (Rio, Graphia, 1994). In: Jornal da Tarde, Caderno de Sábado, seção Livros, São Paulo, 20-8-94, p. 4.
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ANÍBAL MACHADO: A ARTE DE VIVER.
Livro reúne produção variada e dispersa do modernista mineiro que conseguiu prestígio com a publicação de um único conto na imprensa.
Por Carlos Felipe Moisés
Aníbal Machado (Sabará, 1894 – Rio de Janeiro, 1964) participou do grupo modernista mineiro, reunido em Belo Horizonte, nos anos 20, em que pontificavam Carlos Drummond de Andrade e João Alphonsus. Depois de formado em Direito, transferiu-se para o Rio, e sua casa foi, por mais de 30 anos, uma espécie de instituição da vida literária carioca, ponto de encontro de escritores e artistas de várias gerações. (O depoimento de Paulo Mendes Campos e a apresentação de Leandro Konder, nesta edição, são mais do que esclarecedores, a esse respeito.) Seu prestígio literário, caso raro, firmou-se com a publicação de um só conto, na imprensa, em 1931, “A morte da porta estandarte”, desde então peça obrigatória de qualquer antologia.
Homem sem vaidade, aparentemente mais interessado na literatura alheia do que na própria, protelou até 1944 sua estréia em livro, com Vila Feliz, e só reincidiu no gênero – conto – em 1959, com Histórias Reunidas. Publicou ainda Cadernos de João, em 1951, anotações lírico-meditativas, entremeadas de poemas de linha quase surrealista. Um ano depois de sua morte, veio à luz o esperado “romance” de que os amigos davam notícia, vez ou outra, João Ternura, uma narrativa fragmentária, de pendor intimista, em cujo tema central, a marginalidade do homem lírico e sensível, pode-se adivinhar um toque autobiográfico.
Escritor sem pressa
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Quatro livros em quase quatro décadas de carreira fazem de Aníbal Machado um escritor mais do que bissexto, embora escrevesse continuamente. Solicitado pelos editores, instigado pelos amigos a reunir seus escritos em livro, ele alegava não ter pressa e se limitava a ir divulgando pela imprensa o que produzia. Os contos acabaram sendo publicados, mas as crônicas, os artigos e outras peças inicialmente destinadas a jornais e revistas, só agora, nos cem anos do nascimento do escritor, foram reunidas em volume, com o sugestivo título A arte de viver.
O volume abre com os Cadernos de João, reproduzindo-se a edição original de 1957; em seguida, distribuídos por várias secções, vêm materiais de duas espécies: os escritos autobiográficos, em que se destacam o tom reservado, a modéstia ~ a severidade do auto-julgamento, e a crítica literária (textos sobre Machado de Assis, Walt Whitman, Oswald de Andrade, Graciliano Ramos), mas
não só; Aníbal também escreveu sobre outras duas paixões suas, as artes plásticas e o cinema, áreas em que foi pioneiro.
Já em 1941, ele defendia a importância estética e social do cinema, ajudando a divulgar entre nós, por exemplo, o expressionismo cinematográfico alemão (Fritz Lang, Wiene, Murnau) ou o gênio de Eisenstein. Mas sua predileção era por Charles Chaplin. No terreno das artes plásticas, dedicou especial interesse aos modernistas Tarsila, Portinari, Ismael Nery, e colaborou para tornar conhecida a obra dos então principiantes Goeldi, Fayga Ostrower ou Ana Letycia. .
A arte de viver revela, em suma, um escritor de variados talentos e interesses, que se estenderam para além da literatura. O aspecto mais marcante dos textos aqui reunidos é que não se trata de crítica literária ou de artes plásticas, em sentido estrito, mas antes de comovidos depoimentos humanos, singelos, elaborados com despretensão, numa linguagem perfeitamente acessível ao leitor comum. Aníbal Machado jamais pretendeu apresentar-se como “especialista”, em literatura ou outras artes, mas não hesitou em conferir seu prestigioso aval às obras alheias em que descortinou algum lampejo de humanidade.
Lição de vida
Além disso, concebeu essa forma de crítica – o testemunho pessoal – no sentido estrito de compreensão do objeto em causa, a obra criticada, e não como pretexto para a autopromoção. É notável nessa “crítica dispersa” de Aníbal Machado a impessoalidade que ele imprime à sua fala. amena e cordial, cujo foco exclusivo de interesse é o autor criticado, seja ele um escritor, um pintor, um cineasta, e não as idiossincrasias do crítico.
Discreto, avesso à ostentação, embora consciente do prestígio de seu nome no meio intelectual, Aníbal Machado deixou uma exemplar lição de vida, ao dedicar o melhor do seu esforço à dignificação da condição humana, através da amizade, e da arte em si, indiferente ao proveito pessoal que poderia extrair de sua atividade de escritor. Ao celebrar o 30º aniversário da morte e o centenário do nascimento do contista mineiro, a presente edição parece sugerir que já era tempo de a lição ter sido aprendida em mais larga escala.
*ANIBAL MACHADO. A ARTE DE VIVER E OUTRAS ARRTES. CADERNOS DE JOÃO. ENSAIOS, CRITICA DISPERSA, AUTO-RETRATOS, Rio de Janeiro. Graphia Editorial. 1994, 312 páginas. R$23,50.
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C.F.M. é poeta, crítico literário, autor e escritor.