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Sobre o livro Olhos, Capuzes, Corações, de Antônio Branco (Rio, Graphia, 1996). In: Jornal do Brasil, caderno Idéias/Livros, 6/7/1996, p. 7.
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O CÁRCERE DE CADA UM
Marcelo Carneiro
Jovem sequestrado de classe média relata seus 7o dias de cativeiro na Baixada
Olhos, Capuzes, Corações é um livro pequeno, do tipo vira-página, que se lê sem grande esforço em pouco mais de duas horas. O texto é informal, o estilo voltado para o público jovem e a trama decalcada dos romances de aventura. Quem já foi obrigado a ler na escola pérolas como O mistério do cinco estrelas, o predileto de dez entre dez mochilas, sabe do que se está falando. Entre os dois livros, porém, há uma diferença brutal: a que separa ficção de realidade. Olhos … é um relato – o primeiro publicado por uma editora brasileira – dos 70 dias de cativeiro de um jovem de 21 anos, sequestrado em 1993 e libertado após pagamento de resgate. Seu depoimento foi ligeiramente romanceado por um jornalista e escritor, Antônio Branco, que usou prenome e sobrenome pouco conhecidos para assinar o livro. Não houve nem haverá coquetéis de lançamento, noites de autógrafo ou entrevistas em talkshows. Autor e – principalmente – personagem querem distância de qualquer badalação. Desde o sequestro, informa Antônio Branco, o estudante G.M.T. – iniciais que identificam o sequestrado no livro, mas não revelam sua verdadeira identidade – e sua família já mudaram duas vezes de residência. Até hoje, o sequestro não foi solucionado. Do grupo de pelo menos cinco sequestradores, só uma pessoa está presa.
É bom, então, preparar o espírito para ler as 90 páginas do livro, dividido em duas partes. A primeira começa no dia do sequestro e termina – ao contrário da ficção – como um fim de capítulo de novela das oito, à espera das cenas do próximo dia. Só ao ler a segunda parte descobre-se que o rapaz acabou libertado depois de quase dois meses e meio vivendo em uma casa de três quartos em um município da Baixada Fluminense. O que mais chama atenção no livro é a relação que se constrói entre vítima e algozes. G.M.T. foi mantido sob sequestro em uma casa típica da periferia das grandes cidades.
O que torna essa família tão diferente das outras é que, ali, ninguém hesitou em fazer da casa um hotel para sequestrados. Os filhos, por exemplo, atuavam como seguranças dos seqestradores na guarda de G.M.T., e as duas filhas da Tia – como é identificada a mãe dos meninos – ajudavam na confecção do cardápio. Em 70 dias, o jovem participou de animadas partidas de dominó e buraco e até assistiu a uma corrida de Fórmula 1, lado a lado com os sequestradores. Tudo, é claro, sob a mira de revólveres 38. Alemão, a única pessoa da casa que não era da família, exercia a função de principal carcereiro do sequestrado e era assessorado por dois amigos, o filho mais alto e o mais baixo. Todos tinham a mesma faixa de idade de G..M.T.. Até a libertação, G..M.T, jovem de classe média alta, morador de um condomínio na Barra, foi obrigado a habituar-se às perguntas sobre sua vida, à mudança de horários – no cativeiro, costumava acordar às cinco da tarde e ir dormir às seis da manhã – e, quase no fim, a veladas ameaças de morte.
A segunda parte do livro explica alguns pontos obscuros da história real, como a decisão do narrador de interromper a história quando ainda era mantido em cativeiro. Pela leitura dos jornais da época, é possível saber que Olhos, capuzes e corações termina exatamente dois dias antes da libertação. Na verdade, o rapaz só voltou para casa 48 horas depois de seus pais terem ido à TV fazer um apelo pela libertação do filho. Àquela altura, já havia sido pago um resgate de 19,5 mil dólares. Quando iniciaram as negociações, os sequestradores chegaram a pedir 2 milhões de dólares.
Antônio Branco começou a se interessar pela história de G.M.T. logo depois da libertação. Foi até a casa do estudante, na Barra, e precisou de algumas cervejas e muita paciência para convencer uma família aterrorizada de que aquele drama merecia virar livro. Depois de conseguida a autorização, teve início a maratona de depoimentos: “As gravações eram feitas na casa de G.M.T., na minha presença, mas eu evitava perguntas, queria que tudo fosse bem espontâneo.” Essa espontaneidade rende ao livro seus melhores momentos, como a explosão de raiva de G.M.T., ao saber que os pais recusavam-se a pagar uma quantia muito alta pelo resgate, afinal não havia como levantar tanto dinheiro. Em 17 telefonemas, foi negociado o valor da vida do estudante.
Assim, o livro chega aonde o leitor – e, muitas vezes, repórteres que cobrem casos policiais – não conseguem chegar através da leitura de jornais e revistas. É a história por trás da história, mas mesmo assim ainda não é a verdade, como lembra o autor: “Todos os personagens retratados no livro, sequestradores e sequestrado, sabem muito mais do que o que foi relatado.” Essas histórias, livro nenhum jamais vai contar.