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Sobre a literatura brasileira dos anos 1990, citando Bernardo de Mendonça. In: Folha de São Paulo, Caderno mais!, 23/7/2000, pp. 4-11
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ESCALAS & VENTRÍLOQUOS
Flora Süssekind
Talvez se possa observar a literatura brasileira produzida nos últimos anos não segundo o consenso negativo dos balanços de fim de década, mas sob a perspectiva tripla de uma crise de escala, de uma tensão enunciativa e de uma geminação entre econômico e cultural que, se não exclusivas do período, por conta de intensificação e disseminação generalizadas, se converteriam em premissas dominantes da experiência literária contemporânea.
Chama a atenção, nesse sentido, sobretudo no último decênio, uma espécie de variação sistemática de escala, manifesta tanto em exercícios, por vezes paradoxalmente concomitantes, de expansão e compressão, quanto em movimentos de narrativização da lírica, de um lado, e de miniaturização narrativa, de outro, ou quanto na retomada de gêneros como a novela ou o conto mínimo, no campo da prosa de ficção, ou como o poema em prosa e a sequência poética, no da lírica.
Variações que teriam contraparte plástica em pinturas que se avolumam, trabalhos bidimensionais que se projetam em direção ao espectador, ou em figuras escultóricas transparentes, abertas, corroídas internamente por fatias, vazios, parecendo fadadas, por seu turno, à autodestruição, ao despedaçamento. Passagens de uma dimensão a outra, múltiplas proporcionalidades, relações variáveis de medição, reduções, ajustes que parecem atribuir ao referente genérico, à proporção, a função simultânea de modelos e avessos ativos no interior dos processos de formalização a que se acham vinculados. E que talvez possam mediar, ao mesmo tempo, via escalas móveis, um exercício crítico de correspondências genéricas (entre prosa em redução e poema em expansão), artísticas (entre produção plástica e literária) e conjunturais (entre cultura e economia).
Miniaturização, narrativização
Quanto à miniaturização na ficção brasileira contemporânea, ela é perceptível desde a redução cada vez maior das “ministórias” de Dalton Trevisan à opção formal pela “novela”, por exemplo, por Silviano Santiago em “Uma História de Família” e “De Cócoras”, por Jean-Claude Bernadet em “Aquele Rapaz”, Modesto Carone em “Resumo de Ana” e “Ciro”, Zulmira Ribeiro Tavares, em “Jóias de Família”, Vítor Ramil, em “Pequod”, Valêncio Xavier em “Menino Mentido” e “Minha Mãe Morrendo”; desde as fábulas de Carlos Felipe Saldanha às mínimas prosas incluídas por Zulmira Ribeiro Tavares ou Vilma Arêas nas suas coletâneas ou às microficções de João Gilberto Noll divulgadas regularmente na Folha. Desde a experimentação rítmica empreendida por Rubem Fonseca no seu retorno ao conto em “Romance Negro” e “O Buraco na Parede” à rarefação das palavras, que “vão indo” e “não voltam”, no último texto de “Cortejo de Abril”, de Zulmira Ribeiro Tavares, numa espécie de problematização direta, mas em escala reduzida, do seu próprio processo narrativo.
Exemplar, em termos de um emprego crítico das mudanças de escala e da autonomização de pequenos blocos narrativos, é a prosa de Modesto Carone. No seu caso, ainda nos livros de contos dos anos 70-80 -“As Marcas do Real”, “Aos Pés de Matilda” e “Dias Melhores”-, variados exercícios de aproximação e afastamento, oscilações entre o gigantesco e o minúsculo, funcionavam como exposição indireta do processo narratorial.
Pupilas, pêlos, rugas, crânios, pés que adquirem proporções desmedidas, de um lado; miniaturas, restrições de perspectiva, um mínimo jardim de inverno, de outro lado, apontando para o explícito trabalho de mensuração e regulação de distâncias que funciona simultaneamente como recurso de autofiguração para o narrador-protagonista e de conscientização -via instabilização- do processo ficcional em curso. O que, no seu livro “Resumo de Ana”, de 1998, díptico novelesco composto de duas breves histórias de vida, se converteria em princípio de estruturação interna. Pautado, nesse caso, pela rejeição da forma romanesca mais vasta, contínua, em prol de “resumos”, de quadros autônomos, mas interligados por uma mesma voz narrativa, a do neto que fala da avó Ana e do tio Ciro. A redução de escala própria ao novelesco, a estruturação descontínua, contrastada, intensificando, a partir de um foco narrativo aparentemente coeso (o do narrador-memorialista), a visualização, ao contrário, no seu método de composição, exatamente das heterogeneidades, das variações de distância e de tom, das desestabilizações de perspectiva e enquadramento temporal, que o orientam e acentuam o tensionamento particularmente crítico que o define.
Movimento inverso, de expansão, marcaria a expressão lírica. O que já se ensaiava desde os anos 80, em parte como resposta à dominância dos brevíssimos poemas-minuto e como desdobramento narrativo de uma produção de caráter eminentemente expressivo como a do decênio anterior. Lembre-se, nesse sentido, trecho da carta enviada por Ana Cristina Cesar a Caio Fernando Abreu em 17 de novembro de 1982: “Sabe que eu também acalento a sombra de um poema inteiro interminável, tipo William Carlos Williams? Às vezes acrescento um mote. Charles, até Chacal andam alongando seus versos. Waly Salomão, na homenagem a Torquato, leu um belo poema longo bem beat”. Indícios de um alongamento trabalhado sob formas bastante diferenciadas na poesia da década seguinte. Passando das séries poéticas -de Sebastião Uchoa Leite (como a dos dez poemas-de-hospital que abrem “A Ficção Vida”), Paulo Henriques Britto (como os “Sete Estudos para a Mão Esquerda” ou os “Dez Exercícios para os Cinco Dedos”) ou Carlito Azevedo (como a sua sequência de banhistas, o tríptico “Vieira da Silva” ou as “Variações Cabralinas”)- à retomada do poema longo por Haroldo de Campos em “Finismundo” ou por Bernardo de Mendonça nas suas refigurações de formas características da poética popular (a peleja, o recitativo, o abc). Ou à reconceituação do poema em prosa, cuja presença na produção brasileira recente passa por disseminação singular. Manifesta ora em textos isolados no interior de alguns livros (como nos de Angela Melim, Duda Machado, Rodrigo Garcia Lopes, Augusto Massi, Carlito Azevedo, João Moura Jr.), ora como registro preferencial (vide Josely Vianna Baptista e Leonardo Fróes), ora como notação auto-reflexiva, com funções distintas, no interior de coletâneas dominadas por poemas em versos, como as de Sebastião Uchoa Leite, Rubens Rodrigues Torres Filho, Régis Bonvicino, Júlio Castañon Guimarães. E, se um recurso como esse servia a José Paulo Paes em “Prosas”, por exemplo, sobretudo para exercitar um memorialismo a meia distância, Sebastião Uchoa Leite, por sua vez, aproxima-se, por meio das suas prosas, tanto de uma perspectiva descritiva, como nos “Informes” de “A Ficção Vida”, quanto do exercício com uma primeira pessoa a tal ponto autodescritiva e “informe” que parece, por fim, ausentar-se de um texto como “Worm Hole”.
Por vezes, porém, o que está em pauta é a tensão entre o emprego de uma estrutura sintática linear, compacta, e de formas particulares de supressão, de que é exemplar o exercício de interrupção empregado pelo próprio Sebastião Uchoa Leite em “Memória das Sensações 1 e 2”. Ou a retirada de acentos e nomes (vide “Apesar do Cheiro” e “Tirando o” em “Regis Hotel”), o apagamento do nexo causal (vide as enumerações de “Nesta Noite”, em “33 Poemas”), trabalhados por Régis Bonvicino. Já em “Corpografia”, de Josely Vianna Baptista, vocabulário e sinais de pontuação correntes se deixam invadir por brancos e pausas que, num diálogo constante com fotos de corpos e vistas, ao mesmo tempo, figuram e desfiguram, de dentro, cada texto, num duplo movimento de autoengendramento e destruição da forma, característico a um gênero marcado simultaneamente pela desconfiança de leis formais prévias e por um formato ditado por sua própria lógica interna. E funcionando de modo verdadeiramente exemplar, nesse sentido, o caráter autodefinitório pelo avesso, ao longo de dez mínimas páginas, de um texto como “NÃO”, de Augusto de Campos.
Variação de escala que não se limitaria, porém, ao terreno literário. Adotando-se uma perspectiva panorâmica, seria o caso de assinalar, nessa linha, então, a título de amostragem, tanto os exercícios em formato reduzido, expostos no Rio de Janeiro em 1999, por um artista como Eduardo Sued, em geral voltado para telas de maiores dimensões, quanto o movimento, em direção oposta, de José Bechara, passando de seus trabalhos com telas relativamente pequenas, conhecido como “Anjos”, ao emprego, como suporte, de imensas lonas usadas de caminhão, sobre as quais aplica camadas ferruginosas de diferentes espessuras. Tanto as formas expansivas, a escala monumental das esculturas com toras de madeira, expostas na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 1998 e 1999, e realizadas por Elisa Bracher, quanto as séries de pinturas em telas de cerca de três metros de largura, exibidas em março de 2000 no Paço Imperial (Rio de Janeiro) por Afonso Tostes.
Ou, ainda, tanto o desdobramento, por parte de Monica Barki, das suas pinturas em acrílico, mimetizando padronagens têxteis, numa sucessão de trouxas independentes de roupa; quanto o adensamento, operado por Leda Catunda, na década de 90, da superfície pictórica, por meio de sistemáticas sobreposições de vestidos, toalhas, camisetas, meias e tecidos almofadados e costurados uns aos outros. Tensões entre expansão e redução, superfície e volume, bi e tridimensionalidade, que seriam trabalhadas de modo particularmente consequente, mas distinto, nos métodos artísticos de Nuno Ramos e Ângelo Venosa.
Na produção do primeiro, o transbordamento de materiais e relevos de todo tipo, as crostas, os encaixes, resíduos, o espessamento, o desfocamento do quadro, que cresce em direção ao espectador; na do segundo, o diálogo com o pictórico, a frontalidade, o vazamento interno -fatias, pontos, transparências-, como se, nas esculturas de Venosa, seu princípio serial convertesse o espaço, os vazios, simultaneamente em fator de dinâmica construtiva e de uma auto-rarefação potencial. Regiões limítrofes, entre o pictórico e o escultórico, nas quais, não parecendo haver lugar para linguagens exclusivas, não à toa referências à escrita (no trabalho de Venosa, peças de cera e dente, dispostas em linha, sobre a parede, com pequenos intervalos regulares; no caso de Nuno Ramos, o emprego de letras ampliadas, de palavras em parafina sobre placas de vidro, de textos em braile) funcionariam, nos dois casos, como contraparte reflexiva, noutro registro, das tensões características à própria prática artística. E como indicadoras, ainda, dessas miniaturizações e expansões que se afiguram dominantes noutro território, o da escrita literária propriamente dita.
Questões de escala e de valor
Há, pois, a reiterada exposição de uma situação de “desmedida”. O que, se enfatiza, em áreas diversas, o caráter problemático da forma e da própria prática cultural, nessa situação histórica específica, parece dialogar, de perto, igualmente, com a experiência contemporânea da financeirização da economia, da dessolidarização nacional, do esvaziamento estatal, da inserção brasileira num mercado global marcado por uma instabilidade sistêmica. Lançando-se, assim, para o primeiro plano, no panorama cultural atual, por meio da ênfase na dificuldade de determinar a própria dimensão, a discussão das simbologias do valor e a reconceitualização da forma a partir exatamente de seus fatores de instabilização, de suas relações de escala, de suas equivalências com alguns dos mecanismos dominantes do mercado financeiro.
Se, de 1964 a 1984, pois, durante as duas décadas de autoritarismo militar, os traços mais característicos da práxis de resistência cultural brasileira pareciam ser a solidariedade interna antitotalitária, a inserção obrigatória na esfera política, com o propósito de fortalecimento da sociedade civil e das instituições democráticas; desde o restabelecimento de eleições e de um regime liberal-democrático no país e, sobretudo depois da aplicação sistemática de programas de estabilização econômica, sustentados pelo continuísmo político (patente na reeleição de Fernando Henrique Cardoso), pela busca de consensos partidários (tornando praticamente simbióticos PSDB, PFL e PMDB) e pela globalização passiva da economia, passa-se a viver, mesmo entre os setores mais críticos da sociedade brasileira, sob uma despolitização generalizada e diretamente proporcional à disseminação de uma financeirização todo-poderosa -a invocação recorrente das leis do mercado e de uma espécie de “livro mercantil do mundo”, apontando para a sua onipresença autoritária, acoplada à experiência neoliberal. E a problematização do valor, da idéia mesma de estabilização, presente nessa sucessão de escalas móveis da prática artística dos últimos anos, parecendo evidenciar, exatamente, esse traço autoritário embutido, de modo aparentemente menos cruento do que no período militar, mas acentuado, dominante, no quadro brasileiro atual.
O enlace crítico com o paradigma econômico-financeiro não é, no entanto, por si só, explicação suficiente para essas reduções e ampliações, para esses problemas estruturais de dimensionamento e formalização na cultura brasileira recente. Pois, em certo sentido, essa instabilização da medida, da escala, a rigor, se conjugaria até melhor à situação inflacionária explícita anterior ao Plano Real, no Brasil, na qual o valor, mesmo dos alimentos e objetos mais corriqueiros, parecia alterar-se quase cotidianamente. E, sob outro ponto de vista, essa dificuldade de formalização, como analisa Rodrigo Naves, em “A Forma Difícil” (livro não à toa divulgado nesse período), não seria também exclusiva do momento atual, mostrando-se necessária a especificação dos nexos próprios às questões de escala contemporâneas.
Moeda sem substância
A passagem de uma moeda de difícil conversão, porém, para outra mais maleável à conversão universal, mas sem qualquer substância, e cujo câmbio passaria a se apoiar artificialmente numa perda acelerada de reservas, parece hiperpotencializar, a seu modo, não só a sensação de desmaterialização do dinheiro, já característica à situação inflacionária, mas também a convivência com a ausência de garantias e medidas ideais de valor e a dependência crescente de mercados financeiros desregulados e de uma economia baseada em maleabilidades estruturais. Não sendo de estranhar, nesse sentido, por um lado, esforços de estabilização diretamente proporcionais a tais desmaterializações e instabilidades estruturais.
Daí uma espécie de nostalgia igualmente estrutural, manifesta na vida literária recente pela reafirmação dos cânones, do valor de culto dos “grandes nomes e obras”, expresso exemplarmente no nome de publicações como “Cult” ou “Bravo!”, ou no caráter comemorativo (de eventos, centenários, mortes) dos suplementos de cultura dos jornais de maior distribuição do país, pelo retorno estratégico a uma poética baseada em valores artesanais cultos (vide Bruno Tolentino) ou populares-arcaizantes (vide Ariano Suassuna) supostamente meta-históricos, a um exercício crítico pautado numa espécie de liberdade individual sem outras fronteiras (éticas, acadêmicas ou ideológicas) além das do mercado, das impostas pelo movimento editorial, exemplarmente manifesta em artigo publicado na revista “Veja” de 25 de junho deste ano, em defesa do impressionismo, do comentário opiniático, de um modelo de interferência intelectual pautado, a rigor, no jornalismo literário brasileiro dos anos 40, mas, de fato, na transformação, em curso, das páginas de cultura em simples “guias de consumo”.
Sintonias perversas
Não sendo de estranhar, por outro lado, ainda no âmbito literário, sintonias e exposições curiosamente perversas desse quadro de financeirização generalizada. De que é exemplar a propositada desmaterialização da trama narrativa, convertida em jogo amoroso por Bernardo Carvalho, em “Medo de Sade”, em jogo de truco ou xadrez por José Roberto Torero, no seu relato em torno da Guerra do Paraguai, em truque de mágica por Valêncio Xavier, em “13 Mistérios + O Mistério da Porta Aberta”, em roleta por Carlos Felipe Saldanha, no seu “Oraklo do Conde Arpad”. Ou a ausência de qualquer “substância estável” de personagens em sintomática sintonia com as transformações no conceito de valor, com as práticas financeiras de representação, processo de que são exemplares o fluxo de figuras-cliché em “Sexo”, de André Sant’Anna, os personagens-variáveis de “As Iniciais”, de Bernardo Carvalho, o José Maria/Maria José de “Subsolo Infinito”, de Nélson de Oliveira, a Ana C. do “Teatro”, de Bernardo Carvalho, e o irmão que vira mulher, mas sempre mantendo o cheiro de macho, em “A Céu Aberto”, de João Gilberto Noll. Chegando-se mesmo, por vezes, a explicitar ironicamente um inviável ponto de fuga desses exercícios de desmaterialização. “Descoberto e abortado plano de destruir o sistema financeiro do país”, lê-se, a certa altura, em “Medo de Sade”.
Pois, se o quadro inflacionário já forçava a convivência direta com certa onipresença do dinheiro na vida social -“o dinheiro está, de modo devastador, no centro de todos os interesses vitais”, “impõe-se em toda conversação”, dizia Benjamin sobre a inflação alemã-, a relativa estabilização monetária -mesmo quando “relações estabilizadas” são “a miséria estabilizada”, como se lê em “Rua de Mão Única”- parece envolver igualmente um tipo peculiar de insegurança ligada à possibilidade de despossessão, mesmo do mínimo obtido. Daí, de certo modo, o vigor do gênero policial na literatura brasileira recente. Tratando-se, nesse caso, porém, de instabilidade de ordem patrimonial bastante distinta da que é configurada propositadamente pelas variações de escala, com função auto-reflexiva, da arte e da literatura brasileiras contemporâneas, expansões e reduções geminadas criticamente aos próprios princípios de formalização e organização que as orientam.
Daí, por outro lado, o desconforto narrativo que parece acompanhar por vezes a prática dessas ficções em torno de uma insegurança endêmica, de uma criminalização sistemática das questões sociais, como é o caso de romances policiais de grande sucesso comercial, como os de Rubem Fonseca e Patrícia Melo. O que os compele à produção de uma espécie de sub-relato legitimador (ou capaz de criar um efeito de cumplicidade junto ao leitor), em meio à trama central, de que são exemplares os desdobramentos metadiscursivos de “E do Meio do Mundo Prostituto…” ou “Elogio da Mentira”. Ou que, por vezes, parece sugerir guinadas de ponto de vista, como a que orienta a fala sem culpa dos protagonistas de “Monstro”, de Sérgio Sant’Anna, e “O Matador”, de Patrícia Melo.
O que não invalidaria, porém, que também símbolos patrimoniais, papel-moeda, operações bancárias tivessem se convertido em motivos poderosos para o trabalho artístico desde o período de alta inflação na economia brasileira. Daí os trabalhos de Meireles, Waltércio Caldas ou Jac Leirner, voltados, no Brasil dos anos 70 e 80, tanto para as relações entre produto artístico e a forma financeira moderna da mercadoria, entre dinheiro, representação e valor, como já foi assinalado por Marc Shell num dos seus estudos sobre arte e moeda, quanto para a própria funcionalidade dos sistemas de medida e dimensionamento que orientam a prática e a percepção artística. Parecendo exemplar, nessa linha, um trabalho como “Eppur si Muove” (1991), de Meireles, na verdade uma série de ações bancárias, envolvendo extrema perversidade cambial e flutuação de valor, por meio das quais se tratava de realizar 12 câmbios sucessivos, em moedas diferentes, tomando como ponto de partida mil dólares canadenses. Operações ao final das quais a quantia inicial acabaria se reduzindo a US$ 4 e alguns centavos, guardados em pequenos cofres transparentes com formato de porquinho.
Fora da referência financeira simulada, porém, são particularmente significativas, no trabalho de Cildo Meireles, sobretudo das últimas décadas, a quantidade e a variedade de materializações de questões de valor, peso, tamanho, medida. É o que assinalam “Glove Trotter”, também de 1991, uma coleção de bolas de cores e tamanhos variados recoberta pela mesma vasta malha, ou “Fontes”, em que se estabelece um desdobramento de tensões entre diferentes instrumentos e medidas -réguas de carpintaria penduradas, relógios nas paredes, números soltos no chão- e entre conceitos e referentes diversos -as noções de espaço e de tempo-, por meio dos quais se parece simultaneamente expor e desestabilizar os processos de quantificação e dimensionamento e a própria operação de mensuração postos em jogo nessa instalação de 1992. Sublinhando-se, desse modo, tanto uma espécie de “desmedida” semelhante à dos desdobramentos de orientação e proporcionalidade quanto a tensão enunciativa (entre exposição e desestabilização) que caracterizariam a literatura brasileira na virada do século 20.
Tensão enunciativa
Se, do ponto de vista dos processos de formalização, produziu-se, então, uma desproporcionalidade sistemática, sua contraparte, do ponto de vista da dicção, parece ter sido um ventriloquismo acentuado. O que, no terreno da lírica, se manifestaria por meio de uma utilização recorrente, com funções distintas, do monólogo dramático, das teatralizações internas do poema.
É nesse sentido que apontava, ainda em 1990, um poema como “cançãonoturnadabaleia”, de Augusto de Campos, no qual, em diálogo inequívoco com o albatroz baudelairiano, o poeta se autofigurava como Moby Dick, e ao próprio poema como instância dupla, tensão entre negro e branco, voz e visualidade, voz lírica e voz ficcional, forma poética e método dramático.
É, nesse sentido, igualmente, que se pode compreender o exercício de escuta, o dar voz ao outro, que caracteriza a proliferação de vozes heterogêneas, antagônicas, em que se converte a escrita poética de Francisco Alvim. Ou a tensão entre expressão lírica e enredo policialesco, entre soneto e contrabando, em “Até Segunda Ordem”, de Paulo Henriques Britto, ou entre forma convencional e dicção antilírica nos sonetos recentes de Glauco Mattoso. Ou as composições em eco, de Lu Menezes, nas quais espelhamentos mútuos, homofonias, assonâncias, analogias, sublinham não apenas sucessivas diferenciações a princípio imperceptíveis, mas um tensionamento simultâneo entre fala e voz, entre sucessivas figurações e subtrações da voz lírica.
Ventriloquismo
Esse princípio dramático não ficaria restrito, porém, a essas divisões líricas da voz. E o ventriloquismo -explicitado no título “Ventriloquist” de espetáculo recente, em que se sucedem dublagens, clonagens de figuras reconhecíveis da mídia, repetição, a três vozes, de trechos da “Valsa nº 6”- se converteria em elemento estrutural do método cênico de Gerald Thomas, por exemplo. Tensão enunciativa presente, mas trabalhada de modo distinto, na dramaturgia de José Celso Martinez Corrêa, como observa Luiz Fernando Ramos, na sua análise de “Cacilda”, ao sublinhar aí a expansão da rubrica, o contraste entre indicação cênica e parte dialogada, por meio do qual se figura, indiretamente, o adensamento do campo conceitual em que se move o encenador. Problematização da locução perceptível também no uso de legendas, interferências e nas alterações estratégicas de volume adotadas por Bia Lessa na sua versão de “As Três Irmãs”, na passagem de um registro ficcional para o discursivo no método performático de Denise Stoklos, na oposição entre relato corrido e ações físicas fragmentárias que orienta um espetáculo como “Bugiaria”, de Moacir Chaves. Desdobramento vocal que seria estrutural, igualmente, num filme como “Santo Forte”, de Eduardo Coutinho, em que o que está em questão é o servir-se de voz ou corpo a um outro, que pode ser a pombagira, uma reencarnação qualquer, uma figura familiar que volta para dizer alguma coisa, um santo, um exu.
Ou, no ainda no terreno literário, são exemplares dessas cisões numa só voz, ou desses exercícios de duplicação problemática, desde os personagens e narradores-dobradiça de Silviano Santiago (retomados em “Viagem ao México”) ao contraste entre monólogo interior e imagens de televisão que orienta “Amor”, de André Sant’Anna, da composição em dípticos contrastantes, como em “Teatro” e “Medo de Sade”, de Bernardo Carvalho, ao tensionamento da própria dicção entre um movimento de expansão serial (“As Banhistas”) e de intensificação rítmico-imagética interna (“Sob a Noite Física”) que tem marcado o trabalho poético recente de Carlito Azevedo, das sucessivas figurações da morte autoral de Valêncio Xavier ou dos epitáfios de José Paulo Paes, ao livro enviado num caixão, como foi o caso do “Decálogo da Classe Média”, de Sebastião Nunes, ou à dissecação da máquina de escrever em “Cortejo de Abril”, de Zulmira Ribeiro Tavares.
Desdobramentos ficcionais, variações de acento, auto-supressões que parecem apontar para uma espécie de figuração intelectual agônica, de desconfiança sistemática da própria legitimidade, da possibilidade de consideração não mercantil da atividade literária ou da interação crítica com leitores-consumidores. Figuração pouco complacente, mas particularmente tensa, passível, portanto, de movimento, de historicização. De armar, como sugere Beatriz Sarlo, “uma perspectiva para ver” essa “deriva organizada do mercado”.
Mas, se esses desdobramentos da voz, miniaturizações narrativas, narrativizações do poema e variações plásticas de escala podem funcionar, portanto, no sentido da intensificação de uma autoconscientização da própria prática artística, assim como de suas “inserções em circuitos ideológicos” (para empregar expressão de Cildo Meireles), de suas relações com os modelos financeiros, com a instabilidade e a volubilidade dos mercados econômicos, com o conservadorismo político mascarado de política de estabilização, esses mesmos processos podem, no entanto, dar lugar a respostas bastante distintas, movidas, por vezes, por um pânico de “catástrofe iminente”, semelhante ao do período inflacionário alemão descrito por Benjamin, solidificando, dessa maneira, no plano cultural, mecanismos de estabilização conservadora semelhantes aos que têm justificado a globalização autoritária e o continuísmo governamental na história latino-americana recente.
Imposição editorial
É em direção conservadora semelhante que se pode entender, por exemplo, a imposição editorial do modelo bem-sucedido da vasta narrativa histórica à prosa brasileira recente, passando da erudição histórico-epistemológica de Isaias Pessotti à pesquisa bem documentada de João Silvério Trevisan, do caráter de quase roteiro de “Agosto”, de Rubem Fonseca, ao anedótico de Jô Soares. Ou certa disseminação aforística, lapidar, em várias áreas culturais. Das receitas de bem viver, enunciadas em tom oracular, nos livros de Paulo Coelho, ao frasismo que tomou conta desde os jornais aos livros de poemas, como os mais recentes de Manuel de Barros. Enquadramento histórico e redução ao sentencioso que funcionam como tentativas de reorientação estabilizadora para os dimensionamentos problemáticos, instabilizações, expansões, compressões, e para certa “desmedida” metódica, convertidos, via variações recorrentes de escala, distância e processos de mensuração, em fator constitutivo de uma intensificação autocrítica da prática cultural no panorama brasileiro contemporâneo.
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SOBRE tendências estéticas contemporâneas no Brasil, citando “Peleja”, de Bernardo de Mendonça. In: Jornal do Brasil, caderno Idéias, 16/3/1996.
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NARRATIVAS EM MINIATURA
Flora Süssekind
Doze pequenos blocos, feitos de cera e dentes de boi, dispostos lado a lado numa das paredes da Galeria Camargo Villaça (SP) na exposição ali realizada pelo escultor Angelo Venosa em l994, parecem figurar, de modo particularmente exemplar, o movimento de redimensionamento narrativo que tem marcado a produção cultural brasileira desde fins dos anos 80.
Vistas de longe, por conta do uso do mesmo material e de dimensões semelhantes, essas peças, rigorosamente diversas, sugerem uma sucessiva reduplicação ou, pela disposição em linha, um tipo peculiar de escrita. Seriação e linearidade que aproximam este trabalho de Angelo Venosa de outras reflexões em torno da narratividade presentes, mas de modo diferente, em quadros como “O que me leva a você” (1987), de Leonilson, com sua representação literal dos marcos de um percurso, ou no recente diálogo plástico de Luiz Pizarro com o relato de viagem. Ou, no terreno poético, presentes na retomada do poema longo por Haroldo de Campos em Finismundo e Bernardo de Mendonça em “Peleja”, nos pequenos casos que compõem Crime na Calle Relator, de João Cabral de Melo Neto, no trabalho com a série empreendido por Carlito Azevedo em Banhistas. Ou, ainda, passando ao domínio teatral, no emprego sistemático, com fins diversos, de um narrador por Gerald Thomas, Antunes Filho e Luiz Artur Nunes nas encenações voltadas para as formas de aproveitamento dramático do monólogo interior realizadas, nos últimos anos, por Eduardo Tolentino de Araújo.
Se o trabalho de Angelo Venosa expõe, via série, via materiais precários, um esforço de temporalização, chama a atenção, também, para um outro movimento – de miniaturização narrativa – sensível sobretudo na prosa de ficção brasileira recente. E evidenciado por uma tentativa de renomear as próprias histórias, salientando exatamente essa redução de escala. Lembre-se, nesse sentido, subtítulo de Ah, é?, de Dalton Trevisan: “ministórias”. Ou a compressão narrativa evidenciada pelo título da coleção de contos de 1991 de Marilene Felinto: “Postcard”. Ou, em Ovelhas negras, reunião de dispersos publicada por Caio Fernando Abreu em 1995, a reflexão sobre dois textos mínimos seus – “A perda” e “Sobre o vulcão” – que nomeia, via biologia, de “metâmeros” (anéis do corpo de um verme, capazes de originar outros vermes), para sublinhar o seu caráter de “textos que seriam como embriões de si mesmos”.
Mas se, no caso dos doze blocos de Ângelo Venosa, é possível falar em miniaturização, é pela relação que esta série mantém com outro trabalho seu, muito maior, mas feito com material idêntico, e apresentado na Bienal de Veneza de 1993. Na verdade, toda a série de 1994 resulta da destruição dessa peça única anterior, cujos destroços foram retrabalhados pelo escultor. Estabelecendo-se, nesse movimento, uma espécie de dupla temporalização da obra. Pois há, de um lado, o ritmo que a sucessão de peças impõe à série. E, de outro, o diálogo entre o grande bloco e a série. Entre uma peça compacta, na qual os materiais parecem ficar entre parênteses em função da visibilidade do trabalho como um todo, e os doze trabalhos menores, onde os dentes de boi e a cerca tornam-se mais visíveis, têm sua singularidade de organização acentuada a cada repetição em escala reduzida. Narrativa crítica, nesse caso, em que um trabalho resulta de uma fragmentação interessada, de uma reflexão, em escala menor, sobre o anterior.
Quanto à miniaturização na ficção brasileira contemporânea, é perceptível, por exemplo, no retomo ao conto por Rubem Fonseca e João Gilberto Noll, na rejeição do modelo genealógico de romance por Silviano Santiago em Uma história de família, na capitulação em fragmentos relativamente independentes empregada por Valêncio Xavier em Maciste no inferno e O Minotauro, nas fábulas de Carlos Felipe Saldanha, nas pequenas prosas de Dalton Trevisan, de Zulmira Ribeiro Tavares em O Mandril ou Vilma Áreas em A terceira perna, na ênfase de Moacyr Scliar, ao reavaliar, na coletânea de 1995, sua produção como contista, nos textos mínimos, como “Memórias da Afasia” ou “Problema”, ou miniaturizados tipograficamente como “Notas ao pé da página, todo ele em um grande branco, comentado, em letras minúsculas, a partir do rodapé. Mudança de escala que, como na série de Angelo Venosa, parece cumprir função igualmente crítica.
Porque essa compressão narrativa responde, de certo modo, ao movimento inverso, em direção ao romance, que marcou a ficção brasileira na virada dos anos 70 para os 80. Ditado, em parte, pelo interesse comercial das editoras, em parte, pela submissão a uma hierarquização de gêneros que dá primazia ao romance e pelo persistente desejo épico que marca a literatura brasileira sobretudo desde o romantismo. Privilégio do romance que, em vez de explorar o inacabamento e a autoironia oonstitutivos do gênero, se tornou sinônimo de forma fixa, pouco problematizada. Daí a dominância acrítica do romance histórico e do policial, por vezes de uma mistura dos dois, na prosa brasileira. O que não é, evidentemente, um limite do gênero. Basta lembrar o que faz Virginia Woolf com a narrativa histórica em Orlando ou Graciliano Ramos com a história criminal em Angústia. Não há, no entanto, nada semelhante na sucessão de relatos históricos e policiais em que se converteu a literatura contemporânea. E que, mesmo nos seus exemplos “mais cultos”, como na mania por José Saramago, costumam se servir de uma erudição de fachada e de um casticismo lingüístico como disfarces de sua homogeneização conformista da narrativa e de um anacronismo formal no entanto evidentes. A que parece responder criticamente essa retomada da experimentação em formas breves, essa reflexão – via miniaturização – sobre o exercício narrativo.