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Sobre o centenário de Aníbal Machado e o lançamento do livro A Arte de Viver e Outras Artes (Rio, Graphia, 1994). In: Jornal do Brasil, caderno B, Rio de Janeiro, Segunda-feira, 1º de agosto de 1994, p. 1.
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O MINEIRO QUE ADOTOU O RIO
Livro, vídeo e exposições marcam o centenário de Aníbal
João Domenech Oneto
Há dois centenários em 1994 que formam uma coincidência feliz. O de Ipanema e o de um de seus mais ilustres moradores, por mais de 30 anos, o mineiro Aníbal Machado. Ipanema tem merecido todas as festas. Aníbal, inexplicavelmente, anda meio esquecido. Uma injustiça com o escritor, crítico de arte, ensaísta, mas sobretudo amigo de intelectuais, artistas e aspirantes a intelectuais e artistas, que tinham carta branca para freqüentar sua casa, a de número 487 na rua Visconde de Pirajá. Aníbal Machado, mineiro de Sabará, completaria 100 anos no próximo dia 9 de dezembro. Morreu há 30 anos, em janeiro de 1964. Agora começam a surgir as homenagens. A principal, por enquanto, é o lançamento, hoje, do livro A arte de viver e outras artes pela Graphia Editorial, uma reunião de cinco livros do escritor publicados anteriormente em separado, acrescidos de alguns textos publicados apenas nos jornais para os quais colaborou. Outras homenagens, nos próximos dias, serão vídeos e exposições sobre a vida de Aníbal (leia abaixo). .
“Prefiro antes conversar do que escrever; antes ouvir do que ler”, explicou o autor em um texto bibliográfico publicado pela primeira vez em 1938, em uma revista do Rio. Na época, Aníbal tinha chegado há pouco à então capital federal, depois de ficar viúvo – com cinco filhas – em Minas. Bacharel em direito, foi delegado e promotor, sempre meio insatisfeito. Casou novamente, com a irmã mais nova da mulher falecida, teve outra filha, e instalou-se em Ipanema. Dessa época até a sua morte o escritor manteve o mais informal dos “salons” de literatos, artistas e intelectuais. Escreveu pouco, publicou o primeiro livro com mais de 40 anos e foi colaborador bissexto de jornais e revistas.
O filósofo Leandro Konder, na apresentação da edição de A arte de viver e outras artes, assinala um aspecto interessante do engajamento político de Aníbal. “Não era um ativista, um militante. Assumia seu posto, como escritor, nos combates necessários, porém não experimentava nenhum prazer especial em suas entradas na arena da luta política. Constrangiam-no as formas destrutivas de controvérsia.” De fato, era nos textos ensaísticos sobre artistas que admirava – Machado de Assis, Walt Whitman, Jorge de Lima, Portinari, Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Charles Chaplin, Irmãos Marx – que Aníbal sentia-se bem à vontade. Aliás, foi um dos primeiros críticos no Brasil a tratar o cinema como uma arte a ser pensada. Os textos sobre suas admirações, além de muitos outros, estão em A arte de viver e outras artes, que traz também escritos autobiográficos e um de seus livros mais conhecidos, Cadernos de João.
Aníbal, apesar de mineiro convicto, foi conquistado pelo Rio, e principalmente por Ipanema. Na casa da Visconde de Pirajá podiam ser encontrados, nos finais de tarde e nas noites de domingo, gente como Portinari, Carlos Drummond, Paulo Mendes Campos, Olto Lara Resende, Fernando Sabino, Tônia Carrero, Murilo Mendes, João Cabral de Meio Neto, Pedra Nava, Vinicius de Moiaes e muitos outros. Uma das lendas conta que um penetra – eram todos muito bem vindos – dirigiu-se certa vez a Aníbal sem conhecê-lo e perguntou: “Quem é o dono da casa?”, e ouviu a seguinte resposta: “Consta que é um baixinho, careca, de óculos, muito simpático … ” Lendárias ficaram também as batidas de maracujá e outras que eram servidas nas domingueiras.
Maria Clara Machado, uma das filhas de Aníbal, lembra com saudades daqueles tempos. “Era tão bom ver todas aquelas pessoas ali reunidas. Lembro muito de que nós adorávamos dançar na sala. Lembro também do Vinicius paquerando as moças e de alguns estrangeiros famosos que apareceram por lá: Camus, Jean-Louis Barrault.” No início dos anos 50, Maria Clara começou a levar os amigos da PUC que gostavam de fazer teatro. Aníbal assistiu a alguns ensaios do grupo e adotou-os, chegando a traduzir uma peça para eles. “Papai achou tudo ótimo e nos deu muito incentivo.” Assim surgiu o Tablado, em 1951. Outra característica do pai que Maria Clara ressalta é o bom humor, em que Fernando Sabino via um traço forte de surrealismo. Aníbal Machado era um ardente defensor da irreverência.
Há 30 anos, porém, Aníbal deixou um vácuo na vida de muitas pessoas. Foi-se feliz, com o sentimento de realização e a coragem de quem escreveu, em um texto autobiográfico, na terceira pessoa: “Não tem medo de morrer, mas, sim, de deixar de viver.” Paulo Mendes Campos escreveu, um mês depois da morte do escritor: “Ipanema anda perdendo um bocado de sua humanidade: ( … ) dos lados da Praça Nossa Senhora da Paz, (a gente) já não encontra o Aníbal.”
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ANÍBAL POR DRUMMOND
“A casa de Aníbal Machado… Sempre que passo por aquela quadra da Rua Visconde de Pirajá, olho para ela. O 487 continuava de pé, oito anos depois de morrer seu dono e animador. Daqui a pouco será demolida. Um edifício qualquer ocupará seu lugar, e um ou outro passante dirá, em frente às prateleiras habitadas:
~ Era aqui a casa de Aníbal.
Pouco importa não seja mais. Foi, com plenitude, não só a casa de Aníbal como também a casa de muita gente. Em especial, a casa do domingo à noite, quando o tédio inerente aos domingos, ao se despedir, capricha e entedia mais. Então, escritores, artistas plásticos, gente de teatro, moças de ballet, vagos criadores de uma obra nunca revelada, tocavam a campainha de Aníbal, ou antes, não tocavam, iam entrando. ( … ) Assim era Aníbal na limpeza de sua vida, de sua elegância moral e física, na sua graça de diabinho elétrico, de fala às vezes pouco inteligível, tanto nele as palavras galopavam para acompanhar o curso das idéias. Sua casa, das raríssimas no Rio (ou em qualquer parte do Brasil?) onde todo mundo se sentia à vontade, era dessas em que o morador dá fisionomia e humanidade às paredes, aos móveis, a cada objeto que ele recolheu ou manuseou. Não importa, repito, que seja demolida. Viveu o. seu tempo, e como. Sua história é um momento intelectual do Rio, e o retrato de um homem.” (CarIos Drummond de Andrade)
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ANÌBAL POR CAMPOS
“Todo mundo era amigo de Aníbal Machado; os poetas todos: os anteriores a 22, os integrantes da Semana de Arte Moderna, a geração de 45, os concretistas, os indefinidos, que mal tinham metido o bico para fora da casca; os romancistas todos: regionalistas, subjetivistas; os plásticos todos: figura tivistas, abstracionistas, tachistas, escultores, gravadores, desenhistas, arquitetos; os músicos: eruditos e populares, compositores ou executantes; as escolas de samba gostavam de Aníbal e a bossa nova também gostava de Aníbal; católicos e ateus freqüentavam o coração de Aníbal; as crianças de todos os tamanhos o adoravam; os mestiços; os pretos, os judeus contavam com a fraternidade cálida de Aníbal; quem fosse perseguido, quem possuísse um defeito físico, moral ou psíquico, quem andasse infeliz, quem tivesse perdido um amor, quem quisesse ir para Paris ou ingressar no teatro, quem precisasse agudamente de dinheiro, quem clamasse por um prefaciador inteligente, quem andasse à cata de um leitor para seus originais, quem tivesse sofrido um acidente, quem’ pensasse em solidão, quem quisesse. curar-se de embriaguez ou deixar de fumar, quem tivesse um problema, quem desejasse um conselho ou mesmo quem desejasse continuar no seu erro (só precisando de paciência, compreensão, bondade), quem chegasse de longe ou partisse: todos procuravam Aníbal. (Paulo Mendes Campos)
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AS HOMENAGENS
Além de A arte de viver e outras artes, o centenário de Aníbal Machado será lembrado este ano através de duas produções em vídeo e eventos no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Um dos vídeos é um documentário sobre Aníbal. de Eliane Terra e Karla Holanda, com depoimentos de Maria Clara Machado, Rachei de Queiroz e Josué Montello, e com leitura de textos do escritor pelo ator Rubens Corrrêa. O outro, de Sandra Kogut, é uma adaptação do conto Monólogo de Tuquinha Batista. .
Entre os eventos, será inaugurada, amanhã, uma exposição sobre o escritor em Belo Horizonte. Serão fotos, manuscritos, cartas, primeiras edições e ilustrações originais para Cadernos de João, acompanhados por palestras e pela exibição do filme Tati, a garota, de Bruno Barreto, baseado em conto de Aníbal.
A exposição de Belo Horizonte. montada na sede do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, tem como um dos curadores Francisco Aníhal Machado Gontijo, neto do escritor, que garante que fará o possível para trazê-Ia ao Rio:
“Depende de conseguirmos o apoio de alguma empresa aí”, diz o curador. “Seria realmente importante em vista da ligação de meu avô com o Rio.” Aqui para o Rio, porém, já está também confirmada uma exposição de painéis com fotos e textos contando a vida de Aníbal. Ela vai acontecer no foyer do CCBB, coincidindo com o lançamento do vídeo-documentário de Eliane Terra e Karla Holanda, no final do ano.