Seleção de obras e autores da Graphia Editorial.
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Haroldo Maranhão nasceu em Belém no dia 7 de agosto de 1927. Começou a trabalhar como repórter de polícia aos treze anos, no jornal Folha do Norte, de propriedade de seu avô Paulo Maranhão e do qual chegou a redator-chefe. Na adolescência, com um grupo de amigos, entre eles Max Martins, Alonso Rocha e Benedito Nunes, fundou a Academia dos Novos. A partir da década de 40 dirigiu, na Folha do Norte, um suplemento cultural do qual participavam regularmente com artigos, poesia e traduções, nomes de alta expressão literária, entre estes Mário Faustino, Otto Maria Carpeaux, Murilo Mendes e Manuel Bandeira. Fundou a Livraria Dom Quixote, ponto de encontro de intelectuais e, nos anos 50, a revista cultural Encontro.
Livros: A Estranha Xícara. Estórias curtas. RJ, Saga, 1968; Chapéu de Três Bicos. Contos. 1975; Vôo de Galinha. Contos. Belém, Grafisa, 1978; A Morte de Haroldo Maranhão. Novela. SP, GPM, 1981; O Tetraneto D’El-rei. Romance. RJ, Francisco Alves, 1982; As Peles Frias. Contos. 1982; Os Anões. Romance. 1983; A Porta Mágica. Romance. 1983; Flauta de Bambu. Crônicas e histórias curtas. 1983; Dicionário Maluco. Infanto-juvenil. RJ, Rocco, 1984. Ilustrações de Flávia Savary. O Começo da Cuca. Novela juvenil. 1985; Quem Roubou o Bisão? Infantil. 1986; Jogos Infantis. Contos. 1986; A Árvore é uma Vaca. Infantil. 1986; Rio de Raivas. Romance. 1987; Senhoras e Senhores. Páginas de um diário. 1989; Cabelos no Coração. Romance. 1990; Memorial do Fim – A Morte de Machado de Assis. Romance. 1991; Miguel Miguel. Novela. 1992; Querido Ivan – Cartas. 1998; Dicionário de Futebol. 1998; Pará, Capital: Belém – Memória & Pessoas & Coisas & Loisas da Cidade. Antologia, 2000.
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Do livro Poesia do Grão-Pará (Rio, Graphia, 2001, seleção e notas de Olga Savary).
LIÇÂO DE BORBOLETA
Sabe? borboleta é urna flor que sai voando. Não a persiga nem tente capturá-la, que seu vôo é tonto e breve, ela logo se cansa e volta ao caule de onde saiu, repõe-se no seu lugar e deixa ficar-se no que é, no seu estado de flor. Talvez suponha você que a borboleta apenas pousou no galho; não, borboleta não é mais. Pode tocá-la, pode, de leve naturalmente, como todo o mundo deve tocar as flores. Não se mexe, vê? Não é mais borboleta: é flor de novo.
Acontece é que sempre torna a evadir-se, sem nenhuma coordenação motora, no vacilante trajeto dos bêbados, descaindo, levantando-se, contundindo-se nos muros. Flor não sabe voar como os pássaros sabem. Por isso são desajeitadas as borboletas, o vôo em ziguezague, os zigues às vezes mais compridos do que os zagues e às vezes os zagues mais compridos do que os zigues. Se não, não tinha graça. Borboleta voando, reta, certa, como os pássaros. Para mim não teria a menor beleza. A beleza está no aprendizado impossível: de chegarem a voar como os passarinhos. Veja: eu teria até medo se as crianças também, ao invés de aprenderem a andar, saíssem andando firmemente como as pessoas grandes quando não são muito velhinhas ou não tomam vinhos. O menino levantando-se do berço e sem vacilar andando em linha firme na direção do banheiro para fazer seu pipi. Não, o bom é o cair, é o levantar, é o aprender por si mesmo. Olha, olha aquela borboleta azul, a flor movendo-se no ar que começa a encher-se de sol. Será uma begônia, uma petúnia, um crisântemo? Se você prestar atenção, verá que em suas asas, ou em suas pétalas, ainda persiste o orvalho de ainda há pouco.
O PEIXE DE OURO
De borracha é a cintura do peixe de ouro, uma curva infinita cavada na carne. E são deletérias as pernas do peixe de ouro, que se locomove como se fosse o corpo acionado por molas. O andar é elástico, o andar do peixe de ouro, e balança a cabeleira cor de charuto no dorso lisíssimo, tapando a nuca. Não vejo a cara do peixe de ouro, sigo-lhe os passos, vejo-lhe as ancas, de potranca, a roupa é rubra, a carne, de ouro, a carne do peixe de ouro. De repente o peixe inclina a cabeça e percebo, não há quem não perceba, um perfil de penugens que o sol divulga, nítido. Segue o peixe, segue, todo um rio o segue, rio de bichos, somos todos bichos, mordemos com vigor o músculo das ancas, arrancamos pedaços da anca, da melhor anca, da melhor. Guardo no meu casaco o nobre fragmento da anca do peixe de ouro, e quero ao menos um fio, um fio ao menos dos cabelos, mas já a cabeleira foi roubada à força, quando voava descobrindo o pescoço. Cravo meus dentes na nuca do peixe de ouro e bebo-lhe um mel, sugo aflito, como a uma fruta, meus lábios ficam encharcados, escorre o mel, caem gotas na pedra, minha camisa ensopa-se de baba e mel, um mel raro. Desoladamente constato que trepida a epiderme desgarrada de seu recheio, em mantas, flava pele há pouco distendida em curvas, ora couro plissado, de gelhas. Peixe de ouro perde aos poucos seu revestimento muscular, sangra, ossos despontam, interligados por tendões, cartilagens, restos de carne. Com enorme rudez puxo um nervo longo e de bom calibre para encordoar determinada viola d’amore. Desloco, e com delicadeza removo uma vértebra do peixe, como quem se serve de um doce, sorvo o creme vertebral e trituro a fina peça mal calcificada. A meu lado, alguém empunha uma das tíbias como clava, e é milagre a sobrevida do peixe de ouro, que não obstante prossegue sustentado não sei por que espécie de fundamento. Poucos ossos, quase nenhum, raros tendões, nenhuma carne. Agarro para mim a fossa ilíaca; luto por ela, ela me dilacera as mãos, mas é minha, conquistei-a, será o prato real onde comerei. Sigo, seguimos, impulsionados pelo mero costume, pois a unidade se partiu em blocos, o que era peixe não é, senão partículas, pó, aura, microtalco, microtalco de ouro.