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Sobre as reedições dos livros A Leitora e Seus Personagens e Escritos da Maturidade, de Lúcia Miguel Pereira (Rio, Graphia/Biblioteca Nacional, 2005, seleção e notas de Luciana Viégas). In: O Estado de São Paulo, Caderno 2/Cultura, São Paulo, domingo, 12 de junho de 2005, p.D5
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A PRODUÇÃO INTEGRAL DE LUCIA PEREIRA
Reunidos os textos da intelectual admirada por Antonio Candido
Rosane Pavan
Especial para o Estado
Lucia Miguel Pereira nasceu em Barbacena em 1901 e foi a mais completa analista literária do Brasil até 1959, quando o avião em que viajava colidiu com um monomotor da Força Aérea, a caminho do Galeão. Com a morte de Lucia, a crítica brasileira perdeu uma sustentação importante. Depois dessa autora, cujo nome evoca brasilidade, samba e luz, muitos escreveram com erudição e clareza, mas poucos inundaram o leitor de humanismo, espírito e compaixão, como ela fez. Nesse sentido, Lucia foi solitária e ainda é.
Essa pensadora olhou a literatura por caminhos inusitados, a começar por aquele da religião, entendida como contrapartida espiritual à sociedade materialista. Preferiu as narrativas sutis, que seu talento observador podia anotar com segurança, ao romance engajado politicamente, submisso, a seu ver, a uma filosofia da violência. Admitiu que condições sociais, psicológicas e de sexo tenham moldado a obra dos grandes escritoores, contra a tendência de identificar na escrita apenas razões formais e evolutivas, independentes da biografia de quem forjava os textos.
Os fundamentos críticos que nortearam Lucia poucas vezes puderam ser compartiilhados pelos acadêmicos que a sucederam. Certos de que a liiteratura poderia ser observaada por critérios mais ou menos científicos e textuais, eles eviitaram as bases deste pensamento “conservador”, quase impressionista, nascido de uma intuição baseada na vida e nas leituras. Era preciso ser Lucia Miguel Pereira, ela que tentara sem muito sucesso a carreira de romancista, para enxergar de certo modo o ponto de vista dos criadores.
Sua marca mais importannte foi a originalidade com que abordou a produção literária, condicionando-a livremente à personalidade do escritor, a seu tempo, mesmo a seus intentos secretos. Lucia era capaz de adivinhar, já que caminhava ao lado do escritor. Que importa um método carecer de seguidores? O êxito é quase sempre um mal-entendido, dissse ela citando François Mauriac, que citava Rilke …
Lucia nunca freqüentou a universidade brasileira. No entanto, biografou Machado de Assis amplamente em 1936; foi mesmo corajosa ao perscruutar, em vários dos textos desta reunião, o mistério do negatiivismo e da ironia no autor de Dom Casmurro. Venerou Virgiinia Woolf, mas deplorou os maneirismos em seus textos. Fez uma crônica à época da morte de Coelho Neto apenas para explicar quão sóbria havia siido a opção de estilo desse escritor ultrapassado ainda em viida (e quão sujeitos a isso estaríamos todos, à véspera das próprias finitudes).
Não será possível encontrar toda a Lucia nestes bem retornados A Leitora e SeusPerrsonagens e Escritos da Maturiidade, dois volumes que, editados originalmente em 1993 e 1995, reúnem quase 800 págiinas de críticas escritas entre os anos 30 e 50 para revistas e cadernos, entre eles o Suplemento Literário do Estado. Aqui será vista, não a autora de estudos sistemáticos, a intelectual sóbria admirada por Antonio Candido, mas precisamente esta, a manejadora de impressões sobre os rumos literários de seu tempo.
Nestes escritos, Lucia, carioca por formação, criava um gênero, o da crítica-crônica. Iniciava o texto comentando um espírito de época, aquilo
que ouvira de homens e mulheres nas ruas, e capturava essa voz para dentro da análise. Jamais deixava o leitor intrigado com um artificialismo: pegava o sujeito que a lia pela mão, coolocava-o dentro do ônibus a caminho da cidade literária e conversava com ele. Machado de Assis substituíra a sofisticada palavra “psique” por “alma” para ser entendido por todos, então, por que ela não classificaria um livro como “banalíssiimo e cacetíssimo”, se assim mesmo ele fosse?
Ela queria que a vida transpirasse nos textos, para além das invenções, maestrias e diiluições formais dos times de autores criticados. Reclamava deles beleza literária. O que Lucia nunca deixou de fazer nesses escritos para a imprensa foi identificar as questões éticas e morais escondidas na simples obra do escritor analisado e, por extensão, em toda a literatura. Seus pitos se estenderam ao Jorge Amado de “Cacau”, que não falava aos oprimidos, a seu ver, mas aos” gordos e ricos” (e ele retrucou lembrando a fragilidade de Lucia como ficcionista, condição que ela aceitou sem muito contestar). De Jorge de Lima, questionou o trabalho em prosa: “É poeta, e dos bons. Este título não lhe basta?” Reconheceu as qualidades de Graciliano Ramos desde o início, mas lamentou a fala perfeita inverossímil do Paulo Honório de “São Bernardo”.
Especulou sobre a falta de inteligência que havia na oppção cinematográfica diante do romance,.em 1934: “A influênncia do cinema sobre a literatura é coisa mais séria do que paarece. Como alimento da imaginação, há de substituí-la. ( … ) Será o fim da cultura livresca, da hipertrofia do cérebro? Vacila o pedestal em que havia sido colocada a inteligência. Que lhe poremos no lugar?” Em,um texto puramente existencial como “Duas Gerações”, ela considerou, em 1933: “O que morreu foi o ceticismo. E o misticismo tomou-lhe o lugar. Somos uma geração de místi- cos, a geração que descobriu a mística da matéria.”
Embora a divisão dos textos e em dois volumes queira distinguir a crítica do início da intérprete madura, não há mudanças de essência na ação de Lucia. Ela continua a reclamar de um tempo de egoístas, da “literatura de tímidos”, mas com o passar dos anos o faz com quietude, sem provocações diretas. Chega a se desculpar por não traduzir um belo trecho em espanhol (antes, os excertos em francês não mereciam e versão e continuaram a desmerecê-la nesta edição em livro). E também amplia o rastro de análise para Virginia W oolf, Rosamond Lehmann, Aldous Huxley e Albert Camus, entre outros tantos autores seus contemporâneos. Pena não ter vivido para adicionar Jorge Luis Borges ou Julio Cortázar à cena. Depois da leitura destas críticas-crônicas, procuramos por Lucia e não a encontramos.