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Sobre o livro Sem Fantasia: Masculino-feminino em Chico Buarque, de Maria Helena Sansão Fontes (Rio, Graphia, 1999). In: O Tempo, Caderno Magazine, 17/2/1999, p. 1.
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CHICO VESTIDO DE MULHER
Paulo Pires
O livro ‘Sem Fantasia’ analisa o universo feminino na obra do artista
“Chico Buarque se parte, se multiplica em vários eus”, afirma a escritora Maria Helena S. Fontes, autora de “Sem Fantasia, Masculino-Feminino em Chico Buarque”. O livro, que chega esta semana às livrarias e está sendo lançado pela Graphia Editorial, aborda o universo feminino das canções do compositor e tece uma detalhada análise das letras com a temática da mulher. O trabalho é resultado de uma tese de doutorado.
A autora diz que “a paixão pela obra do Chico já existia nas décadas anteriores” e que sempre acompanhou o trabalho do compositor de perto. Ela havia investigado o universo feminino na obra de Guimarães Rosa e agora se volta para as canções de Chico, apesar de existir um certo preconceito na academia pela abordagem poética de letras de música.
Maria Helena acredita que “Chico é uma pessoa consciente do seu tempo, mas o que impulsiona uma obra de arte não é só o consciente, mas algo inconsciente”. A autora busca referências nos arquétipos do “Grande Feminino” para explicar elementos recorrentes na obra do cantor. “Isso, no entanto, não exclui a consciência crítica e a visão de mundo dele”, afirma Maria Helena.
Para efeitos de análise, a autora divide a obra de Chico em duas fases. Na primeira, “a mulher é colocada com um distanciamento, de maneira idealizada”. “A mulher é mais uma musa inspiradora do que propriamente a mulher que vai colocar seus problemas, a psicologia do feminino está apenas delineada”, diz Maria Helena.
O mar surge como referência em várias músicas para simbolizar a perda e a distância, quase que a inacessibilidade de um amor. A janela é outro elemento destacado no livro como símbolo da posição superior da mulher desejada. O olhar é o que resta ao homem, passivo e impotente diante da perda da mulher.
No segundo momento, a obra de Chico se torna mais direta em relação à mulher e assume o eu-feminino em toda a sua complexidade. A passagem entre as duas fases “não é brusca, vai acontecendo de maneira natural e sutil”, diz a autora. A mulher é tratada “não como uma classe, ou de um eu, ele pega todos os aspectos do feminino: a mãe do pivete, a mulher do malandro, a prostituta, a mulher adúltera e a própria mulher amada”, explica.
Nesse momento, a solidariedade com o universo marginalizado, do qual a mulher faz parte (especialmente em uma sociedade machista como a brasileira) se manifesta de maneira mais contundente. Seja qual for a mulher abordada, a valorização da sua condição na sociedade é a tônica das letras a partir do final dos anos 60. Chico explora as várias abordagens dos temas femininos, ora referindo-se de maneira irônica, porém crítica, a um papel subalterno da mulher, ora de maneira mais crua, valorizando a transgressão da moral conservadora instituída.
Chico mostra as transformações no papel da mulher na sociedade “através do fato de ele exaltar e valorizar sua condição, sempre com uma visão libertadora da mulher”, conta Maria Helena. “Ele está sempre caminhando para essa abertura”, dia. A referência ao samba, tema tradicional na própria história da MPB, aparece em Chico muitas vezes associada ao tema da mulher. “Se há uma valorização do samba, há uma valorização da mulher maior ainda, a mulher sempre supera o samba”, diz a autora.
Autora olha solidariedade e separação
Embora não tenha sido prioridade na abordagem realizada por Maria Helena em “Sem Fantasia”, o livro aponta ainda a preocupação política e de engajamento social presentes em sua obra. “Houve um momento de maior ênfase política, em que ele podia dizer alguma coisa, depois passou a dizer através de metáforas e até se calou, gravando músicas de outros compositores devido à intensificação da repressão”, afirma a autora. O engajamento político, no entanto, se arrefeceu e perdeu a força com a abertura política ocorrida nos meados da década de 80.
O fascínio pelo tema da marginalidade, a valorização do excluído, explicita uma solidariedade com os elementos marginalizados e refletem a busca de um outro caminho para o exercício da crítica política e social. Maria Helena diz que essa atração e essa sensibilidade diante dos marginalizados – o malandro, o pivete, etc – facilitam o compositor em incorporar e assumir outros eus.
Outro tema forte em que a mulher se manifesta como eu-lírico na obra de Chico Buarque é a separação. A autora recorre ao teórico francês George Bataille, que defende que existe um tênue limite entre o amor, a violência e a morte. “A teoria é a seguinte: uma angústia no ser humano porque ele quer, ao mesmo tempo, manter a continuidade com o outro e busca, pela morte, outra continuidade”. A continuidade acontece no amor, mas sempre é finita, pois os corpos são distintos. O aspecto trágico é a consciência de uma busca impossível.
Para Maria Helena, a variação no tratamento do tema da separação é uma simples questão de momento interior do poeta. “Há momentos em que ele trata isso com humor, com leveza e há momentos em que percebemos uma emoção profunda, uma dor no dilaceramento”, diz a autora, “são momentos poéticos diferentes, oscilações do humor do poeta”.
De qualquer maneira, a solidariedade e a valorização da condição feminina na obra de Chico Buarque são características singulares do autor. ”Essa solidariedade vem de uma cumplicidade, do lado feminino exacerbado e, ao mesmo tempo, da consciência crítica dele dos problemas humanos, dos problemas sociais que o tocam profundamente”, explica Maria Helena. A autora acredita que o lado feminino do poeta se manifesta mais intensamente e que “a solidariedade com a mulher está acima de qualquer condição masculina dele enquanto homem”.
AGENDA – “Sem Fantasia, Masculino-Feminino em Chico Buarque”, de Maria Helena Sansão Fontes. Graphia Editorial, 200 páginas, R$ 23.