Todos os posts na categoria Bernardo Carvalho
Sobre o livro A Arte de Viver e Outras Artes, de Aníbal Machado (Rio, Graphia, 1994). In: Folha de São Paulo, 10/07/1994.
***
O INTERMINÁVEL LIVRO DA VIDA DE ANÍBAL MACHADO
A Arte de Viver, coletânea do escritor, espelha seu projeto de fazer de si mesmo uma obra
Bernardo Carvalho
“Ele não gostava de escrever. Tinha muita preguiça. Gostava de ouvir”, diz a dramaturga e diretora de teatro Maria Clara Machado, segunda das seis filhas de Aníbal Machado (1840-1964), com quem ele fundou o teatro Tablado.
A curiosa definição partiu do próprio escritor em sua sucinta “Autobiografia”, incluída agora em a A Arte de Viver e Outras Artes (ed. Graphia): “Prefiro antes conversar do que escrever; antes ouvir do que ler. Há muitos anos venho fazendo sem querer, com enormes interrupções, um livro interminável para o qual tenho um montão de notas e que é possível que seja organizado um dia.”
Já pelo título, A Arte de Viver – que inclui os aforismos dos Cadernos de João, ensaios, crítica dispersa, crônicas e auto-retratos – dá a entender que espécie de obra interminável é essa a que se referia Aníbal Machado.
“Toda a vida venho reclamado a prorrogação do prazo para terminar a minha fachada. Não querem atender-me. Nem sei mais o que alegar. Terminar da noite para o dia, não posso. Mas também é aborrecido ficar sempre atrás de antes de concluir-se a construção”, escreveu nos Cadernos de João, de 1957.
“Para mim, Cadernos é o melhor livro dele. É o mais original. Foi muito difícil juntar todos os textos dispersos, que não tinham sido publicados em livro. Havia muita coisa. Ele era um homem muito amado e todo mundo pedia a ele que escrevesse. Críticas, prefácios… Ele fazia com prazer”, diz Maria Clara Machado.
“Todo mundo era amigo de Aníbal Machado”, escreveu Paulo Mendes Campos por ocasião da morte do autor de “Tati, a Garota”, “A Morte da Porta-estandarte” e outros contos. O texto, que agora faz as vezes de prefácio de A Arte de Viver, serve tanto de explicação para o significado do título da coletânea como para o sentido profundo dessa “construção de si mesmo”, que parece perpassar todo o pensamento de Aníbal Machado: uma estética da existência.
Raros são na literatura brasileira os projetos que estabelecem essa estranha ponte entre autor e obra, confundindo-os não como explicação um do outro em reducionismos psicológicos, mas como sinônimo, exprimindo um compromisso radical da vida com a literatura: o próprio autor constituindo-se como obra.
Não é a primeira vez que a Graphia Editorial resolve resgatar um desses projetos e revalorizá-lo em sua série Revisões. Em Um Longo Sonho do Futuro, a editora havia reunido os poderosos diários e confissões de Lima Barreto, para quem a literatura deixava de ser uma expressão da vida para confundir-se radicalmente com ela: “Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela”.
Em Aníbal Machado esse projeto é mais mineiro – menos desesperado, mais discreto e sobretudo muito humorado. “Por timidez, formação religiosa ou respeito humano, (o mineiro) evita oferecer aos outros o espetáculo da própria fraqueza. Não se chame a isto hipocrisia, mas decência”, escreveu em “Esboço de Retrato”, também incluído nesta coletânea.
Aníbal Machado preferia “conversar a escrever; ouvir a ler; simplesmente porque estava obsessivamente imbuído da construção de si mesmo como obra. Há uma integridade e fidelidade heróicas nessa obsessão. Algo de difícil entendimento num mundo onde o marketing e outros fenômenos extraliterários parecem ofuscar progressivamente o sentido da literatura de verdade, aloprando critérios e parâmetros de sensatez.
“A vulgaridade é o que me apavora. Penso que toda a mensagem de um escritor pode comportar-se dentro de uma só obra. (…) Reputo de nível baixo ainda a nossa sociedade literária, vivendo por enquanto de equívocos e expedientes de camaradagem. A glória de um escritor não depende dessa providência, depende da força real de sua criação (…). Publico muito pouco e isso sem nenhuma idéia preconcebida. Escrevendo pouco, publicando menos, é natural que eu não tenha leitores que se possam interessar pela minha vida”, escreve em sua “Autobiografia”.
Os elogios de Aníbal Machado a Goeldi, de quem foi amigo, e a Walt Whitman nos ensaios incluídos em A Arte de Viver dizem respeito a essa fidelidade radical e irredutível entre vida e obra.
“É o canto de um homem para quem o mundo exterior existe como encarnação da idéia e do princípio de identidade. (…) Folhas da Relva parece menos a imagem do mundo do que o seu próprio prolongamento substancial. Livro Bíblia. (…) Uma mulher, não sei bem se de Chicago ou Detroit, lia aos filhos as Folhas da Relva para ‘ensinar-lhes a viver’. (…) Dentro de Folhas da Relva está um homem. E isto basta”, escreve sobre Whitman.
Aníbal Machado dizia ter lido pouco na juventude “na pressa de tirar diretamente da vida o seu sentido, sem a ajuda dos intérpretes – os escritores.” Também escreveu pouco. Não tinha tempo a perder. Estava construindo a sua “fachada”. Estava escrevendo seu “livro interminável”. A Arte de Viver é parte dele.
_________________________________
SOBRE o livro Um Longo Sonho do Futuro, de Lima Barreto (Rio, Graphia, 1993, introdução, seleção e notas de Bernardo de Mendonça). In: Folha de São Paulo, 22/08/1993, p. 6.
***
OS DIÁRIOS IRADOS DE LIMA BARRETO
Bernardo Carvalho
Da reportagem local
Três lançamentos e uma novela da Globo reacendem o interesse pela obra do escritor
Lima Barreto (1881-1922) nasceu para sofrer – e escrever algumas das passagens mais comoventes da literatura brasileira. A começar por seu “Diário do Hospício”, incluído agora no impecável volume de diários, cartas, entrevistas e confissões dispersas lançado pela Graphia com o título “Um Longo Sonho do Futuro” e tributário em parte do trabalho de edição realizado por Francisco de Assis Barbosa em 1956.
Há um novo interesse por Lima Barreto, desencadeado pela notícia de que a Rede Globo prepara uma novela para novembro a partir de contos do escritor, com o título provisório de “A Nova Califórnia”. A editora Revan está publicando uma nova seleção de contos encabeçada pelo que dá título à novela da Globo. A UFRJ está lançando um estudo de Beatriz Resende, “Dentes Negros, Cabelos Azuis”, sobre o autor de “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” e “Clara dos Anjos”. Mas nada se compara à força dos textos íntimos, irados e sobretudo “absolutamente sinceros” de “Um Longo Sonho do Futuro” quando se trata de revelar a originalidade do escritor carioca.
“Sempre achei a condição para a obra superior a mais cega e absoluta sinceridade.” Um pensamento raro dentro de uma tradição literária como a brasileira do início do século pelo menos, em que a reverência particularmente à literatura francesa criou uma distorção beletrista, como se pudesse haver estilo original em literatura sem sinceridade, com meros artifícios de linguagem, como se houvesse grande estilo literário separado da vida, distorção que continua ainda hoje dando alguns frutos podres.
Lima Barreto aprendeu a viver e escrever em guerra. Contra o provincianismo, o racismo, a hipocrisia, a mediocridade, a corrupção, a ganância inescrupulosa e a mesquinharia da Primeira República -” A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou salários nos pareceres. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência.” Muito de seus diários e contos vem dessa raiva, da indignação de ser discriminado como mulato pelos indivíduos brancos mais desprezíveis -“a capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori” – e da irresponsabilidade social de uma classe dominante torpe em que se reconhece tragicamente a sina do país: “Encarando a burguesia atual de todo o gênero os recursos e privilégios de que se dispõe como sendo unicamente meios de alcançar fáceis prazeres e baixas satisfações pessoais e não se compenetrando ela de ter para com os outros deveres de todas as espécies, falseia a sua missão e provoca a sua morte. Não precisará de guilhotina … ” (“A Nova Califórnia e Outras Histórias”).
A “mais cega e absoluta sinceridade”, essa idéia radical de integridade que o levava a atacar deus e o mundo em nome de um lugar melhor, um país melhor, gente melhor, esse “longo sonho do futuro”, faz com que chegue, nos diários e confissões, a um extraordinário vigor literário, confundindo a obra e o país com o que podia haver de mais profundo de si mesmo. Um trecho do “Diário do Hospício” (o escritor esteve internado mais de uma vez após crises de bebedeira) reproduzido na contracapa de “Um Longo Sonho do Futuro” é exemplar:
“Passei a noite de 25 no pavilhão, dormindo muito bem, pois a de 24 tinha passado em claro, errando pelos subúrbios, em pleno delírio.
“Amanheci, tomei café e pão e fui à presença de um médico, que me disseram chamar-se Adauto. Tratou-me ele com indiferença, fez-me perguntas e deu a entender que, por ele, me punha na rua.
“Voltei para o pátio. Que cousa, meu Deus! Estava ali que nem um peru, no meio dos outros, pastoreado por um bom português, que tinha um ar rude, mas doce e compassivo, de camponês transmontano. Ele já me conhecia da outra vez. Chamava-me você e me deu cigarros. Da outra vez, fui para a casa-forte e ele me fez baldear a varanda, lavar o banheiro, onde me deu um excelente banho de ducha de chicote. Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na ‘Casa dos Mortos’. Quando baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria.
“Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que peço dela.”
Lima Barreto é o caso curioso de um escritor perdido num estranho país, tentando lidar com o que o cerca como se tivesse escrito um mau romance e ainda procurasse resolvê-la, não se resignasse, como se o país fosse essa obra ruim, um pesadelo que o destrói, o consome ao mesmo tempo em que o rejeita e discrimina, e que ele termina por satirizar, sem outra solução para sair dessa narrativa mal construída, povoada por personagens rotos, corrompidos, um “cemitério de vivos”.
A sátira dos romances e contos encobre a tragédia desses escritos íntimos. “Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material, há seis anos, me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro.”
Lima Barreto não é louco, mas a força de seus diários vem da loucura, do pré-requisito comum ao louco e ao grande escritor, de se expor, impor-se nu diante do que o rejeita, despojado de todos os escrúpulos fomentados pela hipocrisia ambiente. Num lugar onde tudo corrompe, só lhe resta ser fiel a si mesmo. Num lugar tomado pela mesquinharia intelectual, essa integridade se torna subversão. É essa a radicalidade do que o escritor chama de “absoluta sinceridade”. “Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma ideia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco.”
Lima Barreto foi absolutamente sincero em artigos de jornais, romances, contos, cartas, diários. Aguentou de tudo entre Cascadura e o Leme. Cansou. “O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana. (…) A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isto, a Morte é que deve vir em nosso socorro. (…) Dessa forma, quem, como eu, nasceu pobre e não quer ceder uma linha de sua independência de espírito e inteligência, só tem que fazer elogios à Morte.” Bebeu até morrer. Duas semanas antes de sua morte, escreveu o último bilhete: “Estou verdadeiramente arrebentado de todas as vísceras, órgãos e membros.”
Troca de elogio com Lobato
A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto teve início em 1918, quando o então editor paulista pediu ao escritor carioca um texto para a “Revista do Brasil”‘. Lobato publicou “Vida e Morte de M.J. Gonzaga .de Sá” , de Lima Barreto, em 1919.
Os dois se corresponderam até 1922. A troca de elogios inicial foi pouco a pouco se desenvolvendo em comentários cáusticos sobre figuras de destaque e a mediocridade intelectual do país. O escritor João do Rio, por exemplo, é um dos alvos principais: “Embora o João do Rio se diga literato, eu me honro muito com o título e dediquei toda a minha vida para merecê-lo. Por falar em semelhante paquiderme… Eu tenho notícias de que ele já não se tem na conta de homem de letras, senão para arranjar propinas com ministros e presidentes” escreve Lima Barreto.
A correspondência entre os dois é a perfeita ressonância dessa indignação com um país corrompido. “Praticamos a imbecilidade de ser honestos num país onde só a crapulice dá dinheiro”, escreve Lobato.